sábado, 11 de junho de 2011

A embaixada dos EUA, a indústria do vestuário e a miséria no Haiti


“Telegramas recentemente divulgados pelo site WikiLeaks revelam que as fábricas Levis e Hanes, com apoio da embaixada dos Estados Unidos, atuaram contra o aumento do salário mínimo no Haiti”, afirmam Dan Coughlin e Kim Ives em artigo publicado por “Haïti Liberté” e “The Nation”, que relatam a ação das concessionárias das confecções norte-americanas mais afamadas contra o aumento do mínimo para míseros US$ 5 dólares ao dia no país mais pobre do hemisfério. Thomas C. Thige, encarregado de negócios da embaixada, ameaçou o governo haitiano de que as fábricas fechariam pois: “um salário mínimo de US$ 0,55 a hora tornaria o setor economica- mente inviável e, conse- quentemente, forçaria as fábricas a fechar”

DAN COUGHLIN E KIM IVES

Os proprietários das fábricas concessionárias da Fruit of the Loom, Hanes e Levi’s, trabalharam em estreita colaboração com a embaixada dos Estados Unidos, quando se posicionaram agressivamente pelo bloqueio de um aumento do salário mínimo para os trabalhadores haitianos da zona da indústria de confecção, os piores remunerados do hemisfério. É o que informam os telegramas secretos do Departamento de Estado [obtidos pelo WikiLeaks].

Os proprietários das fábricas recusaram-se a pagar 62 centavos por hora, ou US$ 5 por dia de oito horas, como definido em uma medida adotada por unanimidade pelo parlamento haitiano em junho de 2009. Os telegramas secretos da embaixada dos Estados Unidos, colocados à disposição do periódico Haïti Liberté pelo “Grupo de defesa da transparência do WikiLeaks”, revelam que, nos bastidores, os proprietários das fábricas contaram com o forte apoio da USAID - Agência de Desenvolvimento Internacional dos EUA e da embaixada norte-americana. Na época o salário mínimo era de 70 gourdes [moeda local] ou US$ 1,75 por dia.

Os fabricantes haviam dito ao parlamento haitiano que estavam dispostos a conceder aos trabalhadores um aumento de salário de apenas 9 cents, ou seja, de 31 cents a hora. No total o salário chegaria a 100 gourdes [2,5 dólares] para confeccionar as camisetas, os sutiãs e demais roupas de baixo dos gigantes da confecção dos Estados Unidos, a exemplo de Dockers e Nautica. Para resolver o impasse entre os proprietários das fábricas e o parlamento, o Departamento de Estado pressionou pela intervenção do presidente haitiano René Préval.

“Um engajamento mais visível e ativo da parte de Préval pode se revelar crucial para resolver a questão do salário mínimo e dos protestos que vão decolar – sob o risco do ambiente político fugir totalmente de controle”, argumentou a embaixatriz dos Estados Unidos, Janet Sanderson, em um telegrama enviado a Washington em 10 de junho de 2009.

Dois meses depois, Préval negociou um acordo com o parlamento criando um aumento do salário mínimo em dois níveis: US$ 3,13 (125 gourdes) por dia na indústria têxtil e US$ 5 (200 gourdes) por dia em todos os demais setores industriais e comerciais.

No entanto, a embaixada dos Estados Unidos ainda não se deu por satisfeita. O chefe adjunto da missão diplomática, David E. Lindwall, declarou que o mínimo de US$ 5 por dia “não levava a realidade econômica em consideração”, era uma medida populista e buscava impressionar “as massas de desempregados e trabalhadores mal pagos”.

Os haitianos que defendiam o salário mínimo argumentaram que era necessário acompanhar o ritmo da inflação e aliviar a alta do custo de vida. O Haiti é atualmente o país mais pobre do hemisfério e o Programa Alimentar Mundial estima que 3,3 milhões, o que corresponde a um terço da população, vive em estado de inseguridade alimentar.

Em abril de 2008, o Haiti foi sacudido pelos chamados ‘distúrbios clorox’, alusão a uma dor causada pela fome da qual se diz dar a impressão de que o indivíduo atingido por ela ingeriu cloro.

Segundo um estudo de 2008 do Worker Rights Consortium, uma família de trabalhadores composta de um membro que trabalha e dois dependentes necessitava de um salário cotidiano de, no mínimo, 550 gourdes, ou US$ 13,75, para garantir as despesas normais com a subsistência.

A revelação das pressões dos Estados Unidos a favor dos baixos salários se encontra em telegramas que fazem parte de um conjunto de 1.918 colocados à disposição do Haïti Liberté pelo WikiLeaks.

Questionado sobre esta correspondência, pelo Haïti Liberté, o porta-voz da embaixada dos Estados Unidos no Haiti, Jon Piechowski, enviou e-mail declinando de comentar as descobertas citadas neste artigo, citando uma política que impede comentários sobre documentos que podem conter informação confidencial, destacando que ela “proíbe qualquer revelação ilegal de tais informações”. O porta-voz da embaixada acrescentou, no e-mail:  “No Haiti, aproximadamente 80% da população vive no desemprego e 78% ganha abaixo de 1 dólar por dia, e o governo norte-americano trabalha com o governo haitiano e parceiros internacionais para ajudar na criação de empregos, apoiar o crescimento econômico e promover o investimento estrangeiro direto que esteja de acordo com as normas da Organização Internacional do Trabalho (OIT), no setor da indústria de vestuário, e a investir no terreno da agricultura e outros”.

Durante um período de 20 meses, desde o início de fevereiro de 2008, até outubro de 2009, os responsáveis pela embaixada dos EUA monitoraram a questão do salário mínimo e redigiram informes. Os telegramas mostram que a embaixada tinha total conhecimento da popularidade da medida aprovada.

Os telegramas mostram ainda que o novo salário mínimo tinha até o apoio da maioria dos representantes do setor privado haitiano “em função dos informes segundo os quais os salários na República Dominicana e na Nicarágua (concorrentes na indústria de confecções) haviam igualmente aumentado”.

Ainda assim a proposição gerou uma feroz oposição da pequena elite da zona de montagem no Haiti, que Washington há muito tempo sustenta com apoio financeiro e tratados de livre comércio.

Em 2006, o Congresso americano adotou o projeto de lei HOPE [Haitian Hemispheric Opportunity Through Partnership Encouragement], que ofereceu aos industriais da zona do vestuário incentivos comerciais preferenciais. Dois anos mais tarde, o Congresso adotou uma versão ainda mais generosa do projeto de lei com elevação das franquias comerciais, denominado de HOPE II, e a USAID forneceu assistência técnica e programas de formação para ajudar as fábricas a se expandirem e a explorarem as vantagens do HOPE II. Os telegramas da embaixada dos Estados Unidos afirmam que estes esforços seriam colocados em risco pelos parlamentares que defendiam uma elevação dos salários que acompanhasse a inflação, particularmente dos preços do alimentos: “Os representantes da indústria têxtil, dirigidos pela Associação Haitiana da Indústria (ADIH), se opõem a um aumento salarial imediato de US$ 3,25 no setor, arguindo que este iria devastar a indústria e teria um impacto negativo sobre os benefícios do HOPE II”, diz um telegrama confidencial de 17 de julho de 2009, do encarregado de negócios da embaixada, Thomas C. Tighe.

Tighe afirma que “os estudos financeiros pela ADIH e USAID, sobre o impacto de quase triplicar o salário mínimo no setor têxtil, mostram que um salário mínimo de 22 gourdes a hora (US$ 0,55) tornaria o setor economicamente inviável e, consequentemente, forçaria as fábricas a fechar”. Estimulados pelo estudo da USAID, os donos de fábricas exerceram fortes pressões contra o aumento, reunindo-se com o presidente René Préval, em muitas ocasiões, além de encontrarem-se com mais de 40 membros do parlamento e de partidos políticos, de acordo com os telegramas.

Os telegramas do Haiti também revelam quão proximamente a embaixada dos EUA acompanhou as amplas manifestações em favor do salário mínimo e até que ponto se preocupou com o impacto político da batalha pelo mínimo. Pediram às tropas da ONU que reprimissem as manifestações de estudantes.

Diante das iradas manifestações de trabalhadores e estudantes, os proprietários dos ateliês da miséria e Washington somente conseguiram uma vitória parcial na batalha do salário mínimo, retardando em um ano a concessão do mínimo de US$ 5 por dia e mantendo o salário mínimo do setor de confecção em um nível inferior a todos os demais setores. Em outubro de 2010, o salário mínimo dos trabalhadores da confecção passou a 200 gourdes por dia, enquanto todos os demais setores passaram a 250 gourdes (US$ 6,25).

“Cada vez que a questão do salário mínimo foi abordada, a ADIH tentou amendrontar o governo, dizendo que o aumento do salário mínimo significaria o fechamento certo e imediato da indústria no Haiti e causaria uma perda súbita de empregos”, declara a Plataforma pelo Desenvolvimento de Alternativas para o Haiti em comunicado de imprensa de junho de 2009. “Mentiras, tanto num caso como no outro”, conclui o comunicado.
HP

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