quarta-feira, 27 de abril de 2011

O POVO ENTROU COM O PESCOÇO E A GENERAL MOTORS (GM) ENTROU COM A GUILHOTINA

A GM no Rio Grande do Sul: notas sobre um negócio nada exemplar


O texto que publicamos hoje nesta página são extratos (não chega a ser uma condensação) do trabalho “Novos investimentos na indústria automobilística brasileira: o caso gaúcho”, dos economistas Flávio Benevett Fligenspan e Maria Lucrécia Calandro, que poderá ser lido na íntegra em http://revistas.fee.tche.br/index.php/indicadores/article/viewFile/1403/1765.

Trata-se de um estudo apresentado no III Seminário de Economia Industrial, Política Industrial e Desenvolvimento Econômico da UNESP/Araraquara, SP, em agosto de 2002, posteriormente publicado, em dezembro do mesmo ano, na revista “Indicadores Econômicos FEE”, da Fundação de Economia e Estatística, vinculada à Secretaria de Planejamento do Governo do Rio Grande do Sul.

Seu tema é o implante da General Motors no Rio Grande do Sul, com a constituição do chamado “Complexo Industrial Automotivo General Motors” (CIAG), em Gravataí, composto pela GM e mais 17 empresas “sistemistas”, isto é, fornecedoras e contratadas da multinacional norte-americana. Os autores entrevistaram representantes de todas as empresas e escrutinaram rigorosamente os números da Secretaria da Fazenda do Estado (Sefaz/RS) referentes ao CIAG.

Apesar dos nove anos que decorreram desde sua publicação, esse estudo é curiosamente atual, é verdade que, em parte, não por responsabilidade dos autores, mas pela incrível circunstância de que pouco mudou desde então.  Como se pode ler no site do CIAG, o “complexo” continua formado exatamente pela GM e suas 17 “sistemistas” e o número total de empregados da GM e das outras empresas, que era de apenas dois mil no ano de 2001, hoje é de 5.200 – em 10 anos, a GM e suas “sistemistas” ofereceram aos gaúchos a impressionante quantidade de mais 3.200 empregos, ou seja, 320 por ano.

Quanto às “sistemistas”, são quatro companhias norte-americanas, duas francesas, duas alemãs, uma inglesa, uma holandesa, uma com sede na Índia que foi fundada nos EUA, cinco empresas de São Paulo que há muitos anos tinham como único mercado a própria GM, e apenas uma empresa gaúcha.

Portanto, não é espantoso que os autores constatem que “é bem reduzida a integração das empresas do ClAG com fabricantes locais, seja de peças e componentes, seja de insumos e matérias-primas, não se estabelecendo vínculos de cooperação ou trocas tecnológicas”. A GM e suas “sistemistas” são, portanto, um enclave dentro da economia do Rio Grande do Sul.

O escândalo é que se trata de um enclave espoliador: a GM instalou-se no RS às custas do dinheiro do povo gaúcho. No texto desta página, o leitor poderá tomar conhecimento dos favorecimentos quase inacreditáveis concedidos pelo governo Antonio Britto à GM, inclusive usando o dinheiro arrecadado nas privatizações de empresas públicas para financiar – mais correto seria dizer: doar - a multinacional, na época a maior empresa dos EUA. Perto disso, um dos maiores escândalos da ditadura, os favorecimentos à FIAT para sua implantação em Betim, MG, que rendeu algumas das melhores reportagens já publicadas no país, parece obra filantrópica. E nem falemos da profícua administração Yeda Crusius, aquela governadora que declarou: “mais do que brasileira, a GM é gaúcha”...
C.L.
 


Tão logo foi anunciada a vinda da GM para o Rio Grande do Sul, teve início um amplo debate sobre as repercussões de tal investimento para a economia gaúcha, que subsidiou estudos com projeções de crescimento da renda, do emprego e da arrecadação tributária, em alguns casos, extremamente otimistas.

Dentre os fatores que pesaram na decisão da empresa de se localizar no Rio Grande do Sul, certamente um deles foi a localização estratégica do Estado diante da nova geografia do Mercosul. Os aspectos ligados à infraestrutura do Rio Grande do Sul (telecomunicações, água, energia elétrica, transporte), se não poderiam ser classificados como excelentes, em geral não eram de pior qualidade que os de outros estados da Federação, não se constituindo como pontos negativos.

Já no que se refere à qualificação da mão de obra, seja através da rede de ensino básico, seja através dos cursos técnicos, ou dos centros de treinamento especializados e dos cursos universitários, as condições eram tidas como superiores às dos demais estados.

Outro aspecto que influenciou a decisão da empresa foi a existência de uma organização sindical menos ativa que a de São Paulo. O diferencial de salários em relação ao centro do País, uma característica antiga da indústria gaúcha, também era tido como um fator de atração.

Além dos aspectos anteriormente considerados, a decisão da empresa de instalar sua planta especificamente no RS foi influenciada pelo amplo rol de incentivos oferecidos pelo Governo do Estado. Esses incentivos foram de toda ordem, compreendendo subsídio para aquisição de terreno, instalação de infraestrutura a cargo do Estado e suas companhias, empréstimo para construção das instalações físicas e compra de equipamentos e benefícios tributários diversos, envolvendo devolução ou desconto de ICMS.

Depois de várias especulações, ficou definido que era imprescindível para a empresa se instalar próxima ou na própria Região Metropolitana de Porto Alegre, com bom acesso à infraestrutura, principalmente em relação à rodovia que a ligasse ao centro do País e ao porto de Porto Alegre, o que lhe permitiria uma ligação fluvial com o porto de Rio Grande.

 Essa ligação era importante para viabilizar a importação de veículos da planta da GM na Argentina com benefícios fiscais. A escolha, então, recaiu sobre o Município de Gravataí, muito próximo de Porto Alegre e com acesso privilegiado por autoestrada (BR-290).

O passo seguinte, a cargo do Estado, foi a escolha e a desapropriação do terreno de 363,11 ha, o que implicou um desembolso de R$ 8,7 milhões pelo Estado até o ano de 1999, correspondendo a mais de 90% da área decretada para fins de desapropriação.

Quanto à infraestrutura a ser construída especificamente para o site em Gravataí e também para os portos de Rio Grande e Porto Alegre, o Governo do Estado comprometeu-se a fornecer uma ampla gama de itens:

- terraplanagem e urbanização do terreno;

- instalação de uma ligação de gás natural;

- garantia de fornecimento preferencial de energia elétrica e fibra ótica;
- instalação de linhas de efluentes sanitários e industriais;

- tratamento de efluentes e resíduos sólidos;

- construção e/ou modernização, em área próxima ao porto de Rio Grande, de um terminal marítimo privativo completo;

- diligência para a instalação de meios e equipamentos hábeis para permitir a navegação automática na Lagoa dos Patos, proporcionando a ligação entre Porto Alegre e Rio Grande;

- realização de melhoramentos e manutenção nas rodovias a serem utilizadas para o transporte, bem como providências para a construção de todos os acessos necessários ao Complexo Automotivo e de uma via marginal frontal pavimentada, com denominação proposta de “Avenida General Motors”;

- o Estado também viabilizará, junto à administração do Município de Gravataí, o fornecimento de sistemas de coleta de lixo comum do tipo doméstico e seu respectivo transporte até a área de despejo; a instalação de iluminação pública nas vias do Complexo Automotivo; o fornecimento de transporte público coletivo, com linhas ligando o Complexo Automotivo com o centro urbano do Município, com bairros residenciais e com o sistema de transporte urbano da Região Metropolitana de Porto Alegre, a ser reforçado nos horários de entrada e saída dos funcionários; reforço dos serviços de segurança pública prestados no CIAG [Complexo Industrial Automotivo General Motors].

Já no que se refere ao empréstimo para construção das instalações físicas e compra de equipamentos, o valor acordado em 1997 foi de R$ 253,3 milhões, com cinco anos de carência, 10 anos para amortização e juros de 6% a.a., sem correção monetária.

Os recursos vinham do Fundo de Reforma do Estado (FRE) e eram oriundos de verbas geradas pela privatização completa ou parcial de empresas estatais. [NOTA DOS AUTORES: A ideia era usar a venda do patrimônio público para gerar recursos capazes de atrair empresas que mudassem a matriz produtiva do Estado, além de construir um fundo de aposentadoria pata os professores da rede estadual, o que nunca ocorreu.]

O Banco do Estado do Rio Grande do Sul (Banrisul) liberou os recursos em março de 1997, e o projeto começou a ser implantado efetivamente no meio daquele ano.

Quanto aos benefícios tributários estaduais concedidos, três modalidades podem ser relacionadas. A mais importante delas se refere ao Fundo de Fomento Automotivo do Estado do Rio Grande do Sul (Fomentar/RS), instituído em dezembro de 1996 e regulamentado em setembro de 1997 especificamente para o Complexo Automotivo de Gravataí, como o decreto de regulamentação o denomina. Trata-se de um benefício destinado a financiar o capital de giro das empresas do complexo, que pode ser concedido em forma de empréstimo mensal pelo Banrisul ou em forma de crédito fiscal presumido.

No montante do financiamento, inclui-se (…) o valor da CPMF. As condições do financiamento são: prazo máximo de fruição de 15 anos, carência de até 10 anos, prazo de amortização de até 12 anos e não incidência de juros ou qualquer mecanismo de correção monetária.

Assim, a amortização será feita em até 144 parcelas mensais, iguais e sucessivas, respeitado o período de carência, o que caracteriza praticamente a isenção completa do ICMS gerado.

O Protocolo do Governo do Estado com a GM prevê que os sistemistas não arrecadem ICMS, pois ele é diferido para a GM, isto é, somente ela é que paga o imposto. Contudo os créditos de ICMS dos sistemistas, que são contabilizados quando da compra de matérias-primas, podem ser comprados pela GM, que os utiliza para diminuir o valor do imposto a recolher, isto é, o valor que é objeto do Fomentar.

Faz parte do Protocolo do Governo do Estado com a GM a concessão de outro benefício fiscal, o Fundo de Operação Empresa (Fundopem), que está previsto para fruir somente após o término do Fomentar, portanto, a partir do 16º ano de operação do Complexo, por mais oito anos. O Fundopem é um tipo de benefício existente em vários estados da Federação, apresentando variações em cada um deles, mas, no geral, significando uma redução significativa do imposto a recolher, baseado na restituição do ICMS incremental gerado por novos investimentos.

À época do Protocolo, o regulamento do Fundopem previa que esse benefício se constituiria a fundo perdido, mas, atualmente, ele está alterado, não mais funcionando dessa forma. O que valeria para a GM, nos moldes antigos, era a retenção, pela empresa, de 75% do ICMS devido, a título de restituição do investimento realizado, limitado a 100% dos investimentos fixos. Esse valor corresponde a, aproximadamente, 5,5% do faturamento bruto mensal da empresa. [N.HP:  Os autores acrescentam, em anexo, que o Fundopem, depois, passou a ser um “programa de incentivos que prevê a retenção de um percentual do ICMS para ser usado como capital de giro.

Os recursos têm de ser restituídos, embora em condições muito vantajosas de financiamento. A taxa de juros varia de 0% a 6% a.a., e a correção monetária alcança, no máximo, 90% da variação da TR do período. O prazo de pagamento vai de quatro anos e meio a oito anos.”]

Um terceiro benefício fiscal concedido à GM refere-se à isenção do ICMS nos casos de importação de máquinas e equipamentos sem similar no RS. O valor total dessas importações, conforme o projeto inicial, corresponde a R$ 69,2 milhões.

O Município de Gravataí isentou a GM e seus sistemistas dos seguintes tributos: IPTU, ISSQN [Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza], inclusive sobre serviços prestados na construção civil das fábricas do Conjunto Industrial, Taxa de Limpeza Pública, taxas para obtenção de Alvará de Localização, Licença e Funcionamento, Taxas de Licença para Publicidade, Taxas para Obtenção de Alvará de Construção e Ocupe-se (habite-se), Contribuição de Melhoria, Taxa de Controle de Incêndio e outros tributos que vierem a ser criados e que estejam relacionados ao complexo automotivo e às atividades a serem desenvolvidas.

A isenção é concedida pelo prazo de 20 anos, contado do primeiro vencimento de cada um dos tributos. Além disso, o Município de Gravataí garante à GM a devolução de parte do que lhe cabe do ITBI [Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis] incidente sobre a área onde se instalou o Complexo Automotivo.

RESULTADOS
 
Na avaliação preliminar dos impactos, examina-se, primeiramente, o grau de integração da GM e de seus sistemistas com empresas locais, através de entrevistas com representantes das empresas do ClAG.

As compras de firmas locais são muito reduzidas, isto porque, na opinião do entrevistado [representante da GM], os fabricantes locais não estão capacitados. Não fornecem grandes volumes, nem conseguem atender aos níveis de exigência em termos de preços e qualidade requeridos para entrar na cadeia de suprimentos da montadora. Contudo convém destacar que tanto a GM quanto seus sistemistas praticamente desconhecem a amplitude do parque industrial local.

As [outras] empresas visitadas vendem quase exclusivamente para a GM, e duas delas destinam uma pequena parte de sua produção para outras plantas da GM em São Paulo.

De um modo geral, esses sistemistas realizam operações de montagem de peças e componentes provenientes, em grande parte, de suas plantas sediadas em São Paulo ou em outros estados e de outros fabricantes de partes e peças. As compras locais são realizadas principalmente dentro do próprio site, de sistemista para sistemista, restando para as empresas gaúchas o fornecimento de um volume pequeno de itens de baixo valor agregado.

Em termos de tecnologia, observou-se que os sistemistas possuem a certificação exigida pelas montadoras e são empresas com alta qualificação no processo produtivo que fabricam os componentes e conjuntos segundo projeto da matriz. Isto é, as plantas do site não fazem inovação — o produto é conhecido, as peças e componentes de maior valor agregado vêm da planta de São Paulo. O que fazem em Gravataí é processar matérias-primas em máquinas e equipamentos automatizados e montar componentes segundo projeto desenvolvido pela matriz.

A área de engenharia não existe nessas empresas, porque todo o desenvolvimento do produto e do processo de fabricação foi feito fora do site.

A relação com universidades e centros de pesquisa é quase ausente, o que pode ser explicado pelo fato de que a parte de engenharia é toda realizada nas plantas de São Paulo.

Os sistemistas possuem plantas bastante enxutas, que se caracterizam por pequena área física e reduzido número de empregados no chão-de-fábrica. Os que realizam apenas operações de montagem possuem unidades enxutas pela própria natureza da atividade; e os que transformam matéria-prima, porque operam com máquinas e equipamentos computadorizados.

No final de 2001, o número total de empregos diretos da GM e de seus 16 sistemistas instalados no site era de cerca de dois mil.

A avaliação dos impactos econômicos do ClAG também pode ser realizada mediante a análise das informações fornecidas pela Secretaria da Fazenda do Estado do RS (Sefaz) para 2001, o único ano completo de operação do complexo até o momento. Esses dados revelam que, do valor total das entradas [N.HP: indicativas de compras] da GM, apenas 28,5% correspondem às saídas [N.HP: indicativas de vendas] do bloco dos 16 sistemistas estabelecidos no site para o próprio RS, entenda-se para a GM.

Examinando-se os números globais de entradas e saídas da Sefaz, sem abertura de origem e destino por região, verifica-se que, quando referidos ao valor total das entradas [compras] da GM, 30,7% correspondem ao valor das entradas [compras] dos 16 sistemistas, e apenas 33,0%, às saídas [vendas]. Chama atenção a pequena diferença entre o total das entradas [compras] e o total das saídas [vendas] dos 16 sistemistas, mostrando uma baixa agregação de valor, ou seja, indicando que eles trabalham com processos enxutos, poupadores de mão de obra, com salários baixos e margens de lucro estreitas no fornecimento para a GM.

Nas entrevistas, pôde-se constatar que as empresas do Complexo mantêm frágeis relações comerciais com as empresas locais, visto que compram a maioria das partes e componentes de suas matrizes ou de outras empresas estabelecidas principalmente em São Paulo.

Um percentual pequeno é comprado de outros sistemistas, dentro do próprio ClAG, e poucas empresas locais estão inseridas na cadeia de fornecimento do Complexo. Praticamente todas as fabricantes de autopeças que participam do processo já eram parceiras antigas da GM, no Brasil ou no Exterior. Desse modo, é bem reduzida a integração das empresas do ClAG com fabricantes locais, seja de peças e componentes, seja de insumos e matérias-primas, não se estabelecendo vínculos de cooperação ou trocas tecnológicas.

O mesmo se observa em termos de interação entre as empresas do site e as instituições de ensino e de pesquisa, onde as trocas praticamente não acontecem, com exceção do Senai, utilizado para treinamento de mão-de-obra. A demanda por esse tipo de treinamento, não específico, mostra que não são exigidos no ClAG requisitos muito diferentes dos já utilizados por firmas locais de outros setores.
 

* Professor da UFRGS.
** Economista da FEE e Professora da PUCRS.
FLÁVIO BENEVETT FLIGENSPAN * E MARIA LUCRÉCIA CALANDRO **

Nenhum comentário: