segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Miguel Arraes em 1963: o caminho para o Nordeste e para o Brasil (1)


Dizia o governador Miguel Arraes que "privatizar por privatizar significa não apenas alienar o patrimônio público por preços irrisórios, mas abandonar qualquer plano coerente de crescimento". Era, como o leitor pode sentir, um homem sintético, do tipo que diz muita coisa em poucas palavras.
Lembro-me de sua chegada em Recife, depois do longo exílio durante a ditadura. Era uma lenda – milhares de camponeses, naquela noite, vieram do interior para saudar o seu líder, 15 anos depois que seu governo fora interrompido com a prisão, pelo golpe de 1964; milhares de pessoas simples de Casa Amarela e outros bairros populares da capital pernambucana também estavam ali. Impressionantes os cálidos sentimentos nutridos por aqueles homens e mulheres em relação ao seu governador - embora, depois de algum tempo em Pernambuco, já soubesse muito sobre esses sentimentos. Aquela gente, que Arraes designava como "os humildes, os pequenos", exigia justiça para o seu governador – e, com isso, exigiam justiça para si mesmos. Se os leitores permitem uma concessão ao pitoresco, depois de cumprimentar Arraes, falei para um amigo: "acho que vou levar uma semana sem lavar a mão". Obviamente, era uma brincadeira, mas que expressava o clima da noite em que Arraes voltou para o seu povo.
Arraes era, sobretudo, um homem fiel aos seus princípios. Quando Fernando Henrique – acompanhado pela mídia e por alguns intelectuais solitários – se exibia como "modernizador" por privatizar alucinadamente o país e comparava-se ao presidente Juscelino, comentou Arraes: "Ele não parece em nada com o Juscelino, mas com o Dutra, assessorado pelos americanos. Juscelino se levantou contra o FMI e Prestes foi ao Palácio se solidarizar com ele. Quando a gente vai se solidarizar com FHC por se opor ao FMI?".
Este grande homem, sucessivamente secretário da Fazenda do governo Barbosa Lima Sobrinho, deputado estadual duas vezes, outra vez secretário da Fazenda (governo Cid Sampaio), prefeito de Recife, governador de Pernambuco, preso e exilado em 1964, deputado federal e mais duas vezes governador de Pernambuco, deixou alguns pronunciamentos memoráveis.
Há cinquenta anos ele faria o mais famoso deles – seu discurso de posse, pela primeira vez, no governo do Estado de Pernambuco. Em homenagem a este cinquentenário, publicaremos nesta e na próxima edição esse documento inesquecível. O texto, extraído do livro "Palavra de Arraes" (Civilização Brasileira, 1965), foi condensado. Como o leitor poderá constatar, as palavras de Arraes são de plena atualidade, ainda que o Brasil, o Nordeste e Pernambuco fossem diferentes da atualidade. Mas a essência dos problemas maiores, somos obrigados a dizer, é a mesma.
C.L.
MIGUEL ARRAES
A revolução brasileira, de que tanto se fala, é o projeto nacional que dá sentido e confere dignidade à condição de político, de militar, de administrador, de governante, de intelectual, de cidadão no Brasil dos nossos dias. A preocupação de todos os que estão empenhados na execução desse projeto é reunir e unir todas as forças para a rápida superação do atraso e do subdesenvolvimento em que nos encontramos. E nessa luta é necessário não perder tempo, não gastar força nem queimar energia inutilmente. Agora é o tempo de agir, de fazer, de enfrentar a dura realidade, que é a nossa, para compreendê-la e modificá-la. Tempo de fazer do homem brasileiro - o que morre de fome nas secas do Nordeste e o que vive subnutrido e doente nas grandes concentrações urbanas, o que é vítima das endemias que matam lentamente e o que se desespera por não poder dar aos filhos - água e pão - fazer desse homem brasileiro o centro de todas as preocupações, a fim de ajudá-lo a sobreviver e ascender à condição de consumidor e criador de riqueza.
Por isso mesmo, a filosofia da revolução que o povo brasileiro está fazendo, deve e tem de ser um humanismo autenticamente brasileiro: humanismo que nasça do sofrimento de ver, de sentir, de viver intensamente o drama de querer ser, e de ser, brasileiro neste tempo. Mais do que doutrina, que nunca foi, o humanismo é uma atitude e um método de que o homem se serve para nutrir sua permanente e sadia ambição de tornar-se mestre de si mesmo e do mundo, pelo exercício de sua atividade intelectual. Cristão ou ateu, socialista ou capitalista, o brasileiro atual tem de ser um militante desse humanismo. É direito seu, que só um obscurantismo policial e agonizante pretende negar, o de escolher o credo religioso ou a filosofia política que melhor lhe pareça. Mas é seu dever, a que não pode fugir, ser um homem de seu tempo e de seu povo, um homem da revolução brasileira.
Somos um povo que começa a aceitar suas matrizes étnicas e culturais, um povo que já não tem vergonha de ser mestiço. Somos mais ainda: somos um povo que toma consciência de suas necessidades e de suas possibilidades, de seus defeitos e de suas qualidades, e, por isso mesmo, já não aceita ser tutelado nem governado por estranhos. Ainda mais: somos um povo que descobriu que pode, ele mesmo, explorar suas riquezas e com isso ser próspero e até rico. A Petrobrás é exemplo disso. Volta Redonda também. Foram jovens técnicos e operários brasileiros que planejaram e construíram Paulo Afonso. Foram nordestinos miseráveis e famintos que construíram Brasília, que é fruto da alta capacidade criadora e técnica de arquitetos e urbanistas brasileiros.
Mas, ao descobrir que é capaz de tudo isso, o brasileiro também descobriu que é inadmissível permitir que a grande maioria da população continue a viver em condições miseráveis, condições que se vão tornando cada vez piores se os grandes problemas nacionais não forem estudados e resolvidos. A revolução brasileira nada mais é do que o esforço de todo um povo para superar essas condições de atraso e de miséria. Esforço consciente e honesto, no sentido de fazer com que setenta milhões de brasileiros tenham uma vida mais digna e participem do processo político nacional, dando-lhe conteúdo democrático e popular.
No processo da revolução brasileira devem participar todos aqueles realmente interessados na superação da miséria e do atraso. Temos condições para formar ampla frente, que inclua a maioria dos brasileiros. O que devemos discutir, na verdade, é a maneira de nos unirmos para resolver esses problemas concretos do povo. E quais são eles? São muitos, são numerosos. Mas é preciso não esquecer que alguns são prementes, de solução urgente, inadiável, como a fome e a impossibilidade de o povo sobreviver, em grandes áreas do nosso território.
Já não é mais possível, a quem quer que seja, pensar no Nordeste como uma abstração, ou uma realidade apenas numérica e estatística, a fornecer dados para um mentiroso eruditismo de discurso ou de ensaio. As taxas e os índices apenas traduzem uma realidade econômica, política e social, cuja conservação, por omissão ou ação, constitui crime que o povo brasileiro já conceituou e punirá mais cedo ou mais tarde. Essa realidade é a nossa: o Nordeste somos nós, nós todos, os que encontramos carne para comer e os que levam meses sem comer carne, ou comem apenas charque e peixe seco, quando comem.
Somos nós o Nordeste, essa região dentro da qual caberiam juntos países como a França, Portugal, Bélgica, Itália, porém que apresenta um dos mais baixos índices de vida do mundo; dentro da qual vivem 23 milhões de brasileiros, dos quais mais de 15 milhões não se utilizam do dinheiro, nem sabem, ou mal sabem, qual é a nossa moeda corrente, enquanto na área daqueles países citados vivem 110 milhões de pessoas.
O Nordeste somos nós, esse contexto monstruoso e anti-humano no qual milhões de pessoas consomem sua energia vital, ou fecundando e gestando seres que jamais chegarão a viver, ou tentando alimentar crianças que jamais terão energias para crescer e produzir, ou disputando a vida com doenças que a miséria, o atraso e a fome disseminam a cada dia.
Hoje somos uma das mais internacionalmente conhecidas áreas de atraso, de miséria e de fome; uma espécie de câncer que o mundo inteiro conhece e tem medo que se alastre. O câncer do Nordeste preocupa os norte-americanos, que imaginam possa a nossa doença ser politicamente contagiosa e contaminar os vizinhos e por isso, não sei se tão ingenuamente, nos doam leite em pó, como se a nossa fome fosse diferente da fome deles, como se ela não fosse, como a de todo mundo, uma fome renascente. Esse humor negro não faz rir nem resolve, não pode resolver a situação de uma só família nordestina, quanto mais a situação do Nordeste.
Já fomos uma das mais prósperas e ricas áreas do mundo. Aqui neste solo, nos séculos XVI e XVII, floresceu uma civilização - a da cana de açúcar - graças ao emprego de uma tecnologia altamente desenvolvida. Foi porque éramos tecnologicamente adiantados que aprendemos a ganhar terra ao mar, a construir edificações sólidas e bonitas, a amanhar a terra para a lavoura, a fazer engenhos. Tínhamos um produto para exportar - o açúcar - que era disputado no mercado internacional. Tudo isso se perdeu: somos hoje uma das áreas mais pobres e atrasadas do mundo. Continuamos, é verdade a produzir açúcar, mas o produto de exportação do Nordeste, neste século XX, é gente, gente de carne e osso, como nós. E pau-de-arara: desde o trabalhador braçal, o flagelado das secas, até o funcionário, o profissional liberal. Essa é a nossa maior vergonha, é a nossa vergonha. Exportamos exatamente aquele homem que representa investimento nosso, porém cuja energia vai contribuir para o desenvolvimento e a riqueza de outras regiões. É preciso parar com isso, é preciso acabar com essa vergonha.
O trabalhador, esse foi aos poucos se aviltando até chegar às condições de extrema miséria em que se encontra. Se assim não fosse, como se poderia explicar que a extensa faixa de massapê do Nordeste - uma das mais férteis terras do mundo - seja nove vezes maior do que a área agricultável do Japão, que produz alimento para 100 milhões de pessoas, enquanto de nosso massapê mal extraímos a cana e uns poucos produtos de subsistência, em quantidade extremamente abaixo das necessidades dos 23 milhões que ocupam a região? O que há é que a exploração dessas terras, quando se faz, não se faz para atender às necessidades da população, mas segundo os interesses de meia dúzia de grandes proprietários. Daí o atraso, a fome, numa região que conheceu a riqueza, a abastança, que foi o centro de uma civilização altamente desenvolvida. Essa região ocupa grande parte da invejada dimensão continental que é o Brasil. Isso significa que nós fazemos parte de um todo que não poderá crescer sem que cresçamos nós, também.
O povo do Nordeste sabe que, em outros lugares, um povo como ele pode viver, enquanto ele apenas luta para sobreviver. O povo do Nordeste aprendeu mais: aprendeu que esse outro lugar, em que um outro povo pode viver, não é um país de conto-de-fada. Pode nem ser necessariamente um outro país; pode ser aqui mesmo, uma simples área do território brasileiro.
Essas desigualdades regionais e sociais, esse desenvolvimento desigual das diferentes regiões brasileiras constitui um dos pontos mais críticos de nosso processo de mudança, desse conjunto complexo de transformações econômicas, políticas e sociais a que estamos chamando de revolução brasileira.
E se ninguém mais hoje admite que o desenvolvimento do país se processe em benefício de certas áreas e em detrimento de outras, muito menos se admite que ele se processe em benefício apenas dos grupos econômicos. Do nosso processo de desenvolvimento tem de ser beneficiário todo o povo brasileiro. Daí porque me incluo entre aqueles que reclamam a participação do Estado, cada vez mais direta e mais decidida, no sentido de melhorar as condições econômicas do Nordeste, região na qual, aliás, a intervenção do Estado se tem mostrado mais ativa e sensível, pela ausência de iniciativa privada. Essa é uma das características da economia nordestina: a de que ela se encontra praticamente virgem da influência dos grandes grupos financeiros. Mas, mesmo admitindo, como admito, que é necessária a participação de empresas nacionais privadas, sobretudo daquelas que provaram sua experiência na região Centro-Sul, entendo que a solução dos problemas econômicos do Nordeste não poderá, jamais, ser atingida mediante a simples instalação dessas empresas ou fábricas de capitais privados. E isso porque elas apenas procurariam, como é de sua essência, propiciar lucro a seus acionistas e não viriam para cá com o intuito de resolver os problemas das populações nordestinas.
A má-fé de uns poucos pretendeu insinuar que eu iria transformar Pernambuco numa ilha isolada do resto do Brasil. Pernambuco é um Estado da Federação brasileira, é um dos integrantes do Nordeste, e a solução de seus problemas, em grande parte, depende da política que o governo federal vier a adotar em relação a esses e a outros problemas. Mas há uma outra verdade, tão elementar quanto essa, que é necessário dizer e repetir, não ter receio de dizer e repetir: nós não poderemos liquidar o subdesenvolvimento e a exploração do capital estrangeiro sem um adequado planejamento do desenvolvimento da economia nacional.
O exemplo da industrialização me parece bastante ilustrativo dessa verdade. Sabe-se que é necessário, para o desenvolvimento do Nordeste, criar um sistema que modifique sua posição de simples fornecedor de produtos primários às áreas mais adiantadas e industrializadas do país. E que uma das bases desse sistema econômico é a industrialização, cujo mito cresce dia a dia, dada a inevitável correlação entre desenvolvimento industrial e padrão de vida.
Desse mito se aproveitam os que não têm pudor de enriquecer à custa da miséria do povo, os que não têm vergonha de vender o país à ganância dos grupos internacionais. E disso se aproveitam criando um outro mito, este mentiroso e historicamente falso, de que a industrialização só poderá ocorrer com a ajuda do capital estrangeiro. Qualquer estudante de economia sabe que o desenvolvimento industrial do país teve impulso, precisamente, quando era nulo, ou bastante reduzido, o afluxo de capitais estrangeiros.
Nos anos 30, o nosso avanço industrial apresentou um aumento anual superior a 8%, sem que houvesse qualquer aumento na aplicação de capitais estrangeiros em nossa economia. E quando, logo depois, esses capitais começaram a aumentar, ocorreu, consequentemente, uma redução na taxa anual de nosso crescimento industrial. O que é pior: esse afluxo de capitais estrangeiros contribuiu para que, em muitos setores de nossa economia, persistisse, e se solidificasse, a estrutura econômica tipicamente colonial que estávamos querendo modificar, tendo isso acarretado onerosas consequências que ainda hoje constituem problema a resolver. E é fácil compreender por quê. Foi, e é, porque os capitais estrangeiros se aplicaram e se aplicam não em atividades que interessam ao nosso desenvolvimento, mas naquelas atividades que oferecem mais vantagens aos investidores privados estrangeiros, todos eles interessados em matérias-primas a baixo preço, em mão-de-obra a salário de fome, em favores e privilégios cambiais e fiscais, de cujos lucros já se desconta o preço do suborno, da advocacia administrativa, da traição.
Tudo o que acabo de dizer não mais constitui novidade para o povo. Também já não pode servir de pretexto à ação policial contra os que defendem os interesses do Brasil. São verdades que sangram no corpo da nação, chagas abertas no coração e na alma de cada brasileiro, desde o histórico suicídio de Getúlio Vargas. São palavras dele:
"Depois de decênios de domínio e espoliação dos grupos econômicos e financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci. Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social. Tive de renunciar. Voltei ao governo nos braços do povo. A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho (…) Assumi o governo dentro da espiral inflacionária que destruía os valores do trabalho. Os lucros das empresas estrangeiras alcançavam 500% ao ano. Nas declarações de valores do que importávamos existiam fraudes constatadas de mais de 100 milhões de dólares por ano".

Essas palavras que acabo de ler, escritas por Getúlio Vargas pouco antes de suicidar-se, são as que melhor documentam a verdade a que há pouco me referi. Mas há outras verdades que o povo já não desconhece. O povo sabe, por exemplo, que a industrialização, somente, não operará o milagre de salvar o Nordeste; e sabe, também, por mais crédulo ou místico que o pintem, que a salvação do Nordeste não ocorrerá por milagre de nenhum santo ou messias. A salvação do Nordeste é uma tarefa de homens.

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