quarta-feira, 16 de março de 2011

O serpentário do neoliberalismo: um estudo da idiotice econômica (2)

O neoliberalismo não fracassou apenas (!?) na Inglaterra, no Chile, no México, na Ásia, na Rússia, na Argentina, etc. e etc. Fracassou também no Brasil, apesar (ou, mais exatamente, por causa) do arrocho salarial, do ataque aos direitos trabalhistas, sindicais e previdenciários, do importacionismo desvairado, da entrega de empresas públicas e privadas a monopólios externos, da especulação alucinada com os juros da dívida pública, da miséria, do desemprego e da fome. Quando Lula assumiu o governo, o país estava à beira do colapso

CARLOS LOPES


Aos leitores que desejarem uma exposição direta – e irretorquível – da combinação de vigarice e imbecilidade que constitui o neoliberalismo, recomendamos o documentário “Inside Job” - que acaba, aliás, de ganhar um Oscar – de Charles Ferguson, com a excelente narração de Matt Damon.
 
Nesse documentário são os próprios neoliberais que demonstram essa viciosa combinação. Por exemplo, os diretores daquelas “agências” que distribuem notas para o “risco Brasil” e “investment grade” para certos países declaram, no Congresso dos EUA, que suas classificações não valem nada, são uma “opinião” qualquer... Naturalmente, dizem isso para fugir à constatação, dos parlamentares que os interrogam, de que essas classificações são confeccionadas para burlar os incautos.
 
Esse terreno, o do mero trambique - ainda que em escala planetária - nos obriga a uma breve (nem tanto) interpolação. A novidade, evidentemente, não é a existência de vigaristas - ou a sistemática vigarice monopolista e financeira, incluindo a da mídia desses monopólios. Há 70 anos, o presidente Franklin Delano Roosevelt, ao intervir nas empresas de eletricidade dos EUA, afirmou que a ação do governo “se torna mais necessária porque não tem havido somente falta de informação e informação difícil de se entender, mas, sobretudo, como demonstrou a Federal Trade Commission, desenvolveu-se nos últimos anos uma campanha sutil, sistemática, deliberada e pouco escrupulosa, de falsa informação, de contra-propaganda e, se permite a palavra, de mentiras e falsidades” (cit. in Aristóteles Moura, “Capitais Estrangeiros no Brasil”, 2ª ed., Brasiliense, 1960, pág. 134).
 
A novidade, portanto, não é essa, mas o surgimento de tantos papagaios dessas mentiras e falsidades – sobretudo das já desmascaradas –, alguns até se dizendo (e acreditando-se) “de esquerda”.
 
Portanto, antes de continuarmos a partir do rompimento, pelos EUA, da relação entre o dólar e o ouro, acordada com todos os países capitalistas para que aceitassem a moeda norte-americana como “moeda internacional”, algumas observações ainda sobre o conteúdo da primeira parte deste artigo.

 
TRAGÉDIAS

 
O presidente da CUT, Artur Henrique, antes da posse do atual governo, fez, na revista Teoria e Debate, uma consideração importante:
 
“Algo que devemos ter sempre em mente é que Dilma não foi eleita para fazer o mesmo que Lula, e sim para fazer mais, para aprofundar as mudanças e as transformações iniciadas no governo anterior. Com esse horizonte nos comprometemos todos que fizemos campanha para sua eleição. Portanto, será preciso tomar certas decisões difíceis. (…) Por parte do futuro governo, e especialmente da presidenta Dilma Rousseff, a tarefa vai requerer grandes doses de sensibilidade social e confiança na capacidade de mobilização e compromisso de nossas bases. (…)  A luta por um salário mínimo que não refletisse a crise econômica internacional de 2008/2009 – R$ 540 – mas sim que reconhecesse a capacidade dos trabalhadores brasileiros de terem vencido essa mesma crise, graças em grande parte ao próprio salário mínimo – R$ 580 – é simbólica do desafio das escolhas à frente”.
 
O presidente da CUT menciona que as “escolhas devem passar por continuar praticando taxas básicas de juros estratosféricas, ou incrementar as políticas sociais e redistributivas” e que “mesmo sob o argumento da necessidade de cortar gastos para ampliar investimentos, ideal sempre embalado pela ideia de responsabilidade fiscal tão ao gosto do mercado, a taxa básica de juros parece um risco no disco”.
 
Com efeito, essa “ideia de responsabilidade fiscal tão ao gosto do mercado” é a mera irresponsabilidade para com a sociedade, a nação, e para com o mercado - que não é composto apenas por bancos e outros especuladores financeiros. Quanto à “necessidade de cortar gastos para ampliar investimentos” (necessidade tão falsa que sua própria formulação é ridícula), as “despesas correntes”, os gastos com o “custeio”, são, precisamente, o que o governo gasta com o atendimento ao povo como consequência dos investimentos. É verdade que existem gastos que estrangulam os investimentos públicos – mas não são os gastos com o custeio, e sim com os juros da dívida pública.
 
Concordando com o presidente da CUT, gostaríamos apenas de ressaltar a motivação deste nosso artigo: contribuir para que o governo Dilma cumpra a expectativa de “aprofundar as mudanças e as transformações iniciadas no governo anterior”. Como já disse mais de uma vez a nossa presidente, embora o papel central caiba a ela, essa missão só é possível com a participação de todos - ou não alcançaremos a erradicação da miséria que ainda infelicita tantos brasileiros.
 
Depois de oito anos que foram, em essência, um avanço, não podemos, realmente, retroceder àqueles tempos em que o ministro da Fazenda, um certo Fernando Henrique Cardoso, “procurava disfarçar sua proposta de aumentar os juros com a afirmação de que eles só deveriam cair ‘com a (…) progressiva melhora das contas públicas’ (...)”, quando, na verdade, “o que as desequilibraria seria exatamente a manutenção dos juros em patamares elevados. Quanto às contas públicas, a ideia inicial era ceifar US$ 20 bilhões no gasto público, que correspondiam a 34,6% da receita líquida da União (descontando as operações financeiras e as transferências para Estados e municípios).  Depois de muita pressão, reduziu o corte para US$ 6 bilhões; além disso, foi encaminhado um projeto de lei para o Congresso limitando as despesas com servidores em 60% da receita corrente da União, Estados e municípios. Propunha-se, também, um forte arrocho nos Estados e municípios” (Nilson Araújo de Souza, “A Longa Agonia da Dependência”, Alfa-Omega, 2004, pág. 482).
 
Isso aconteceu em 1993.
 
É natural que os líderes sindicais sejam dos primeiros a se preocuparem com os caminhos para o avanço do país. O movimento sindical é, em todo lugar, a antítese social do neoliberalismo. Exatamente por isso, Reagan, Thatcher, Pinochet, e, inclusive, Fernando Henrique, dedicaram-se a quebrar, esmagar, humilhar, se possível eliminar, ou, o que é praticamente a mesma coisa, dividir o movimento sindical. Sem isso, é impossível impor essa desgraça sobre a população.
 
Nesse sentido, é importante ressaltar que o neoliberalismo não fracassou apenas (!?) na Inglaterra, no Chile, no México, na Ásia, na Rússia, na Argentina, etc. e etc. Fracassou também no Brasil, apesar (ou, mais exatamente, por causa) do arrocho salarial, do ataque aos direitos trabalhistas, sindicais e previdenciários, do importacionismo desvairado, da entrega de empresas públicas e privadas a monopólios externos, da especulação alucinada com os juros da dívida pública, da miséria, do desemprego e da fome. Quando Lula assumiu o governo, o país estava à beira do colapso.
 

SALÁRIO

 
Mas, vejamos uma das “mentiras e falsidades” - para usar as palavras de Roosevelt, há sete décadas – impingidas pelo neoliberalismo.
 
Susan George, no texto que citamos na primeira parte deste artigo, aponta que o “investimento direto estrangeiro” (IDE) – a tomada de empresas públicas e privadas pelos monopólios privados dos países centrais – tem como efeito a redução do emprego, em bom português, o aumento do desemprego. As ex-estatais privatizadas pelo governo Fernando Henrique Cardoso são um exemplo gritante, como também as empresas privadas brasileiras que se tornaram filiais de monopólios transnacionais.
 
Esta diminuição de emprego, bem entendido, não se deve, hoje em dia, a uma maior mecanização, automatização ou informatização no processo produtivo das empresas desnacionalizadas. O desemprego que se segue às atuais invasões de IDE nos países dependentes é uma consequência, sobretudo, da intensificação do trabalho físico e - o que é uma forma dessa intensificação - da precarização do trabalho, sob várias formas, inclusive (e, talvez, sobretudo) as terceirizações.
Em suma, passa-se a fazer com menos empregados o que antes se fazia com mais empregados. Daí, os programas de demissão – compulsória ou cinicamente apelidada de “voluntária” (isto é, demissão sob chantagem).
 
Porém, resta dizer que não somente o emprego é reduzido quando se deixa o IDE tomar a economia, mas também o salário. E não somente (o que já seria gravíssimo) porque, pelo mesmo salário, aqueles que mantêm o emprego passam também a fazer o trabalho daqueles que o perderam, ou porque, evidentemente, o aumento do desemprego pressiona o salário real para baixo.
 
Em “A Longa Agonia da Dependência”, Nilson Araújo de Souza mostra como as invasões do capital estrangeiro na economia brasileira provocaram, sempre, a queda do salário real. O motivo mais geral é bem óbvio: ao tomar empresas nacionais, uma transnacional não se contenta com o atrativo inicial, isto é, com os salários mais baixos em relação ao seu país de origem. Ela procura rebaixar ainda mais os salários, pois, quanto menores eles forem, mais lucros uma filial poderá remeter para sua matriz – e essa é, exatamente, a medida da eficiência de uma filial.
 
Embora pareça evidente, nos tempos de hoje somos obrigados a relembrar que “o capital exportado procura obter no país que o recebe uma taxa de lucros superior à do país que o exporta. Esse é um fato notório e de graves consequências políticas” (Aristóteles Moura, op. cit., pág. 123).
 
A questão, repetimos, é que a principal função de uma filial é remeter lucros para a matriz, como sabe qualquer lojista que queira expandir o seu negócio além da área original de sua empresa. Mas, diferente de uma pequena rede de lojas, as filiais de multinacionais remetem lucros para fora do país, ou seja, para onde o nível salarial, assim como a taxa de lucro, não são os mesmos do lugar onde está a filial.
 
Obviamente, interessa à multinacional que essas diferenças entre níveis salariais e taxas de lucro sejam as maiores possíveis – e, certamente, a multinacional não pretende aumentar a diferença pela elevação dos salários na matriz e/ou pela diminuição da taxa de lucro no seu país de origem, até porque isso de nada serviria ao seu objetivo econômico. Multinacionais são monopólios, isto é, seu objetivo, ao contrário das empresas não-monopolistas, não é apenas o lucro, mas, sempre, o lucro máximo.
 
Por isso, as filiais de multinacionais sempre farão o possível para reduzir o salário real. Há quem diga que esse é o interesse de qualquer empresa. Não é verdade. As empresas nacionais não-monopolistas dependem objetivamente (isto é, seja qual for a consciência que seus donos tenham disso) do nível geral dos salários para vender seus produtos. Sem que o conjunto da população – ou o Estado, cujo dinheiro depende do conjunto da população - tenha poder aquisitivo para adquiri-los, essas empresas são inviáveis.
 
O mesmo não acontece com as multinacionais, exatamente porque são monopólios, portanto, exploram uma faixa estreita do mercado - aquela com renda para pagar sobrepreços (ou seja, preços acima do valor das mercadorias). Para essas empresas, o melhor é que o nível geral dos salários seja baixo, com uma alta concentração de renda numa parcela relativamente pequena da população.
 
Isso, evidentemente, acaba levando à crise – como, aliás, lembrou um economista chamado Guido Mantega em um livro intitulado “Acumulação Monopolista e Crises no Brasil”. Mas isso foi em 1979.
 
Nos países dependentes, como o Brasil, há outro problema além da remessa de lucros. Como demonstrou, entre outros, Aristóteles Moura, a acumulação da própria filial da multinacional é feita não com investimentos vindos da matriz, mas com os lucros que obtém no país em que está instalada. Em outras palavras, além de remeter lucros para sua matriz, a filial tem que extrair lucros que permitam algum reinvestimento – seja simplesmente para repor o desgaste do maquinário, seja para expandir-se no país onde está instalada. Toda ou quase toda a expansão de uma filial de multinacional é baseada não em investimentos externos da matriz, mas em lucros obtidos no país onde está essa filial (cf. Aristóteles Moura, op. cit., págs. 35 e seg.). Somada à remessa de lucros, esse é mais um fator que faz com que as filiais de multinacionais joguem, todo o tempo, para reduzir o salário real.
 
Ainda que, em parte, esteja implícito no que acabamos de expor, não entraremos aqui, por desnecessário para os objetivos deste artigo, na tendência a deprimir a taxa de lucro, que é acelerada pela monopolização da economia. Basta dizer que o arrocho salarial é a resposta evidente dos monopólios a essa tendência – e remeter o leitor ao livro de Nilson Araújo de Souza, “A Longa Agonia da Dependência”, onde poderá encontrar uma boa exposição do problema.
 

NO BRASIL

 
O “investimento direto estrangeiro” (IDE) como solução para o desenvolvimento dos países dependentes é uma das mais deslavadas imposturas do neoliberalismo. Como pode algo com as características que acabamos de apontar ser considerado – inclusive por nosso atual ministro da Fazenda – benéfico e decisivo para o país, isto é, para o seu crescimento?
 
Durante os oito anos do governo Fernando Henrique, entrou 2,6 vezes mais IDE (US$ 163,45 bilhões) do que o estoque acumulado em toda a história do país até 1994 (US$ 61,82 bilhões - cf. UNCTAD, “Inward FDI stock, by host region and economy, 1980–2009”).
 
Depois do início da campanha de Mantega pelo “investment grade”, entraram mais US$ 154 bilhões – e o estoque de IDE, em 2009, havia mais do que sextuplicado em relação a 1994, passando de US$ 61,82 bilhões para US$ 400,81 bilhões (cf. UNCTAD, loc. cit.).
 
Do ponto de vista do estoque total de capital, isto é, da propriedade estrangeira em relação ao capital fixo total das empresas que existem no país, isso representou um aumento de cinco vezes – a propriedade estrangeira passou de 4,8% do estoque total de capital fixo (máquinas, equipamentos e edificações) para, aproximadamente, 22,5% (v. “Desnacionalização atinge 22,5% do estoque de capital fixo do país”, HP, 05/11/2010), sem contar as participações acionárias de menos de 10% de capital estrangeiro – que, pelos critérios atuais do FMI e do BC, não são classificadas como “investimento direto”.
 
No entanto, apesar dessa avalanche, foi necessário que o presidente Lula implementasse uma vigorosa política de investimentos públicos para que o país conseguisse crescer – e empregar milhões de brasileiros. O “investimento direto estrangeiro” foi um fracasso naquilo que interessa ao país.
 
Então, em que esse tsunami de IDE foi bem sucedido?
 
Primeiro, em aumentar as remessas de recursos para fora do Brasil: o envio de lucros fez as remessas totais subirem, de uma média anual de US$ 13,424 bilhões no período 1979-1994, para uma média de US$ 33,603 bilhões no período 1995-2010 (cf. BC, “Balanço de Pagamentos 1947-2010”).
 
As remessas, como é óbvio, aumentaram em relação ao IDE cumulativamente - ou seja, as empresas desnacionalizadas no governo Fernando Henrique continuaram a remeter lucros para fora do país no governo seguinte, somadas às que foram desnacionalizadas posteriormente.
 
Por isso, de US$ 98,931 bilhões nos oito anos anteriores ao governo Fernando Henrique, o total de remessas aumentou para US$ 194,325 bilhões (1995-2002), e, nos oito anos posteriores, para US$ 343,423 bilhões (2003-2010). E, quando existe uma crise nos países em que essas multinacionais têm as suas matrizes - e um câmbio que permite a troca de reais por cada vez mais dólares no país onde têm a sua filial - essas remessas vão para o pico do Everest: num único ano, em 2010, foram a US$ 70,630 bilhões.
 
Segundo sucesso da enxurrada de IDE: o aumento das importações.
 
De uma média anual de US$ 21 bilhões (1987-1994), as importações subiram para uma média de US$ 53,573 bilhões (1995-2002), e, depois, para uma média anual de US$ 109,895 bilhões (2003-2010).
 
Hoje em dia, a segunda atração, logo depois dos baixos salários, para uma multinacional ter uma filial em outro país é, exatamente, a de estabelecer um entreposto importador nesse outro país. As filiais de multinacionais são montadoras – e montam produtos, sejam carros ou dentifrícios, a partir de componentes e insumos importados. Não há nenhuma novidade nisso (ver, p. ex., um estudo de 14 anos atrás: Luciano Coutinho, “A especialização regressiva: um balanço do desempenho industrial pós-estabilização”, in “Brasil: desafios de um país em transformação”, José Olympio, 1997).
 
Daí, a explosão de importações que acompanhou a enxurrada de “investimentos diretos estrangeiros” – sobretudo importações de “bens intermediários”, isto é, componentes para a indústria, que hoje constituem quase metade (47%) das importações no Brasil.
 
O resultado é que essas importações ameaçam as contas externas do país. Já fornecemos as médias anuais. Agora, os totais: de US$ 168 bilhões e 510 milhões (1987-1994), as importações subiram para US$ 428 bilhões e 586 milhões (1995-2002) e, depois, para US$ 879 bilhões e 159 milhões (2003-2010).
 
Em menos de quatro anos, Fernando Henrique já havia explodido as contas externas com o aumento das remessas e das importações. As dificuldades atuais, resultado das ilusões no IDE vendidas pelo neoliberalismo, são uma demonstração extra, e candente, do problema. A solução de Mantega para as consequências da entrada descontrolada de IDE é frear o crescimento da economia para não estourar as contas externas – e continuar o privilegiamento da desnacionalização. O que só levará a outras freadas.
 
Mas, leitores, continuaremos na próxima edição essa emocionante exposição. Não percam o próximo capítulo

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