domingo, 20 de março de 2011

As entranhas sangrentas do Império no épico de Scorsese

Ao revelar a violência extrema, o ódio racial e religioso, a intolerância, a  arrogância e o preconceito presentes na formação da principal cidade dos EUA, o filme Gangues de Nova York lança luz sobre as bases da formação da elite norte-americana e os dias atuais


Em Gangues de Nova York, o épico de Martin Scorsese que traz como pano de fundo uma história de vingança pessoal para, na verdade, revelar as bases da formação da cidade de Nova Iorque e um período crucial da história americana, a Guerra Civil, dois detalhes saltam literalmente aos olhos do espectador. O primeiro é a águia estampada no olho de vidro de Bill, o Açougueiro, o líder dos Nativistas, criação extrordinária do ator  Daniel Day-Lewis. O segundo é uma das frases pronunciadas por ele em um diálogo com o jovem vingador Amsterdam (Leonardo DiCaprio), filho do homem que lhe furou o olho: “O que me manteve vivo todos esses anos foi o medo. O medo é o que mantém as coisas em ordem”.


A ÁGUIA E O MEDO  

Os dois detalhes por si só já nos remetem a essa espécie de lema que tem sido escrito e reescrito ao longo da história americana por sua classe dominante para justificar as constantes agressões, usurpações e tentativa de domínio aos povos do mundo. A arrogância, na representação da águia como símbolo do país,  e o medo incutido a seu próprio povo como justificativa a toda e qualquer ação para se “protegerem” dos “malvados do mundo”, dos “negros“, dos “comunistas”, do “eixo do mal”, do “terrorismo”, enfim, tudo que supostamente ameace a tão propalada “democracia americana”, isto é, da mais cínica ditadura já vista pelo mundo.  

TRESLOUCADO BUSH
 

Para revelar as entranhas do Império que neste exato momento, através de seu tresloucado chefe, George Bush, está prestes a começar uma guerra assassina pelo petróleo árabe, que tem gerado gigantescas mobilizações contrárias em todo o mundo, inclusive nos EUA,  Scorsese não abriu mão de metáforas como estas, que dialogam com a tentativa de compreender a atual sociedade americana, mas, mais ainda, escancara com imagens contundentes de um cineasta que domina com maestria o seu ofício, a violência extrema daqueles dias, o povo esmagado pela miséria e pela própria violência, a intolerância, o preconceito, o ódio racial e religioso, a arrogância, a corrupção e o início da estreita relação entre o crime organizado e o poder, a formação da máfia e, saltando nos anos, o que seria o germe do entrelaçamento atual dos grandes conglomerados da indústria armamentista com a política e a economia americana.

Naquele período, em 1846, quando o filme começa, eram as gangues formadas pelos auto-denominados Nativistas (os chamados “novayorquinos”, já nascidos na cidade ou que haviam chegado um pouco antes que os outros) e as gangues formadas por imigrantes irlandeses católicos, chamados “Coelhos Mortos”, que se matavam pelo domínio da região então conhecida como Five Points (Cinco Pontas), perigosa área de Manhattan. A barbárie é a tônica, embora, apesar da violência estar presente nos dois grupos, é entre os irlandeses Coelhos Mortos que reside algum grau de princípios morais e respeito ao ser humano.

Nesse momento acontece a primeira grande vitória do que no filme é mostrado como o germe da parte podre dos EUA. O líder Nativista vence a batalha e mata o líder dos Coelhos Mortos, o Pastor Vallon (Liam Neeson), na frente de seu filho. Saltando para 1861 - no momento em que se inicia a Guerra Civil, conflito provocado por latifundiários, aristocratas e escravistas do Sul que se sentiam ameaçados pela eleição do presidente Abrahan Lincoln, que defendia o fim da escravidão, contra o Norte, industrial e abolicionista -, o filho do Pastor Vallon, Amsterdam, reaparece, depois de passar anos em um reformatório, para vingar a morte do pai. Nesse período os imigrantes irlandeses chegavam a Nova Iorque em levas de 15 mil por semana, muitos saindo diretamente do navio em que chegavam para as filas de alistamento obrigatório para a guerra. Além disso, nesses anos, a cidade já fervilhava de chineses, italianos, ingleses e negros. Todos se odeiam entre si, e todos, principalmente os Nativistas, odeiam os negros. 

Já com instituições organizadas, polícias municipais e federais, bombeiros e políticos, a gangue do Açougueiro domina Nova Iorque. A barbárie continua, mas sob  as  asas da lei, ela a seu serviço e em estreita relação com o poder local.

Em meio a cenas dantescas, incêndios provocados e disputas entre os bombeiros que teriam que combatê-los, chacinas de negros, enforcamentos de inocentes, combinados entre o político-chefe e o Açougueiro apenas como exemplo para conter as revoltas que saíam de seus controles, cinismo exacerbado para cometerem-se as maiores atrocidades tendo como altar a bandeira americana, cartazes de Lincoln sendo apunhalados e frases lapidares como “votos não ganham eleições e sim os apuradores”, ou “paga-se metade da ralé para que matem a outra metade”, o filme vai mostrando a base ideológica da elite mais deteriorada norte-americana que se formava.

Amsterdam infiltra-se na gangue do Açougueiro no intuito de matá-lo e passa a ser seu protegido, até ele descobrir sua verdadeira identidade. Neste ínterim Amsterdam e a batedora de carteiras Jenny Everdeam (Cameron Diaz) já formam um par amoroso. Mas o filme não está muito para esses colóquios. É um épico de homens, brutalidades e muito sangue.

GUERRA CIVIL 

A batalha final, ou, a vingança, quando o Açougueiro é morto por Amsterdam, se dá em meio aos tumultos de 1863, quando multidões saem às ruas contra a convocação obrigatória para a guerra, que, apesar do saldo de 600 mil mortes, abre caminho para a efetiva abolição da escravatura, em 1865, promulgada por Lincoln.

Foram quatro dias e noites de batalhas campais, morte, destruição, negros chacinados, queimados, crucificados. Enfim, o filme é um relato que evidentemente não esgota a compreensão de uma sociedade complexa como a americana, que, inclusive, através de muitos de seus líderes e cidadãos valorosos foi responsável por importantes avanços na história da Humanidade, mas diz muito de alguns princípios - ou falta deles - que norteiam sua elite e seus momentos atuais. Afinal, o Açougueiro Bush está lá, no poder, mas, felizmente, o mundo e o próprio Estados Unidos estão cheios de Amsterdans.
ANA BRAIA

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