quarta-feira, 30 de março de 2011

O serpentário do neoliberalismo: um estudo da idiotice econômica (6)


O neoliberalismo não é a primeira histeria reacionária que substitui ideias por uma ladainha de slogans. O nazismo também era assim. Se o leitor estranhou a referência, pedimos que lembre os milhões de seres humanos que morreram no desemprego e na fome durante os últimos 30 anos

CARLOS LOPES

Não há questão onde se condense com mais nitidez o cunho do neoliberalismo do que a da inflação.
 
Bastante comum é a confusão entre o receituário para a inflação do antigo monetarismo, que nós conhecemos durante a ditadura, e o dos neoliberais. Trata-se de um engano, induzido pela própria propaganda neoliberal, semelhante àquele que identifica o mercado tão perfeito quanto Deus - típico da vulgaridade dita “neoclássica” - com o neo-credo posterior, no qual esse mercado é apenas retórico, ou, melhor, midiático no pior sentido da palavra.
 
Da mesma forma que os neoliberais não acreditam num mercado que equilibra a si mesmo, também não acreditam que a contenção da demanda (isto é, o garroteamento do consumo da população, esmagando um dos lados do “conflito distributivo” dentro de um país) seja remédio para a inflação. Naturalmente, eles também são a favor de conter a demanda, mas por outras razões – basicamente porque a produção “desvia” dinheiro da especulação.
 
A diferença de fundo consiste em que o ponto de vista neoliberal não é mais aquele – como o era, sofrivelmente, o dos “neoclássicos” – da economia de um país. Pelo contrário, o único ângulo sob o qual veem a economia é o dos monopólios e cartéis dos países centrais, mais exatamente, o do financismo transnacional. Note-se, inclusive, que isso também não é o ponto de vista da economia nacional desses países centrais – nem mesmo a dos EUA. Não são, por exemplo, os interesses da economia norte-americana em geral que eles defendem, mas apenas aqueles do seu setor mais parasitário. 
“LIVRE MERCADO” 
Ao contrário dos seus antecessores, eles assumem, na prática (embora não em seus panfletos), que o “livre mercado” não existe mais, que a economia dos países centrais foi encarcerada por monopólios financeiros, que a economia internacional é um pasto das multinacionais, de alguns bancos e de peixes menores que comem o que os maiores já digeriram. Sua – digamos assim – originalidade está em que são a favor de tudo isso, e acham pouco: querem que o mundo todo seja submisso a essa pilhagem.
 
Assim, seu pseudo-combate à inflação consiste em despejar sobre os países dependentes os estoques de mercadorias encalhadas dos monopólios que têm sua matriz nos países centrais. Para fazê-lo, receitam a manipulação do câmbio dos outros países – isto é, fazem com que os países dependentes concedam fenomenais subsídios cambiais para baratear artificialmente as mercadorias importadas, em relação às produzidas internamente.
 
Daí, as aberrações no câmbio impostas burocraticamente - a la Menem & Fernando Henrique - ou pela tapeação, a la Meirelles, com taxas de juros extorsivas para atrair dólares, hipervalorizando a moeda nacional, além de intervenções cavilosas no fechamento do “mercado de câmbio”.
 
Para explicitar a questão: em 1991, que lógica havia, num país como a Argentina, com um PIB que era 31 vezes menor que o dos EUA, em decretar que um peso valia um dólar?
 
A lógica era fazer com que os produtos importados, barateados em relação à produção interna por essa supervalorização do peso, invadissem a economia argentina.
 
Isso explica, também, outro fenômeno: o Brasil, nos oito anos anteriores ao governo Fernando Henrique, importou mercadorias no valor total de US$ 168,510 bilhões (1987-1994); esse valor mais do que dobrou no governo tucano: US$ 428,586 bilhões (1995-2002); e dobrou mais uma vez nos oito anos seguintes, com Meirelles no BC: US$ 879,159 bilhões (2003-2010).
 
Em suma, a média anual foi de US$ 21 bilhões para US$ 109,9 bilhões – portanto, o valor das importações mais do que quintuplicou entre 1994 e 2010.
 
Não precisamos dizer que não foram, em geral, importações de mercadorias que não fabricássemos ou não pudéssemos fabricar. O leitor tem sua própria experiência para comprová-lo.
 
Há quem tenha a opinião de que essa avalanche de importações é normal, que isso é um sinal de crescimento, etc.  Mas é preciso, na melhor das hipóteses, estar anestesiado para ter essa opinião, pois, para começo de conversa, isso significa que o país está impedido de crescer além de certo limite – ou haverá um estouro nas contas externas, devido às importações (sem contar, para piorar a situação dessas contas, o aumento das remessas de lucros devido à desnacionalização da economia).
 
O meio de executar essa substituição da produção interna por importações foi a hipervalorização do real. Depois do terrível período em que Fernando Henrique devastou a indústria nacional com a imposição de uma quase completa paridade com o dólar, a ação do Banco Central fez com que sua cotação, de R$ 3,60 (início de 2003 – dólar médio desse ano: R$ 3,07), hoje mal se aguente em torno de R$ 1,65 (cf. BB, “Indicadores Econômicos Financeiros” e BCB, “Boletim/BP”; usando a cotação média de cada ano e descontando a inflação, verifica-se que nenhuma das moedas dos 40 países de maior relação comercial com o Brasil sofreu “valorização” comparável ao real).
 
Não faremos comentários sobre os que propagandeiam esse estrupício como a conquista, enfim, pelo país, de uma “moeda forte”. Nossa paciência com a idiotice também tem seus limites. Se isso fosse bom, os EUA não estariam atropelando todos os outros países para desvalorizar o dólar.
 
Voltemos à inflação.
 
O problema desse “método” é conhecido (e óbvio): o imenso subsídio cambial às importações para barateá-las (a rigor, um dumping cambial) deixa a indústria nacional, que tem seus produtos encarecidos pela mesma razão, sem condições de competir - e não por uma deficiência dela, mas porque a política monetária é de favorecimento aberto aos monopólios externos. E não somente a indústria é afetada, como lembrou o senador Blairo Maggi, dono do grupo empresarial que é o maior produtor de soja do mundo, durante o recente depoimento do atual presidente do BC ao Congresso.
 
Por um meio totalmente artificial e manipulatório, uma taxa de câmbio irreal, tira-se a competitividade dos produtos fabricados dentro do país e paga-se aos monopólios externos para que quebrem o que há de nacional na economia – pois as filiais de multinacionais simplesmente passam a importar o que antes produziam aqui. Além disso, com o encarecimento do que é produzido em reais, as exportações são crescentemente travadas.
 
Já havíamos, várias vezes, abordado esse problema. Mas há outro: tão logo os monopólios e carteis quebram ramos da indústria nacional, aproveitam-se do domínio sobre o mercado para aumentar, de qualquer jeito, os preços dos produtos importados - sem que haja indústria nacional que possa substituir as importações, o suposto “combate” à inflação vai para o espaço.

É exatamente um ensaio disso que está acontecendo neste início de ano, com um aumento nos preços dos importados.
 
Era inevitável que isso acontecesse quando há uma crise nos países centrais. Quanto a isso, são inúteis as convocações do ministro Mantega aos demais países do mundo (“Vou fazer um apelo para que os países entendam o seguinte: ou todos fazemos um jogo comum, respeitando as regras de câmbio flutuante, ou cada um vai buscar seus interesses, o que vai causar conflitos”).
 
Parece até que há dúvidas sobre qual é – e sempre foi - a opção dos monopólios norte-americanos, europeus e japoneses...
 
Mais ou menos a mesma coisa é a alternativa do sr. Tombini, presidente do BC: em vez de reduzir os juros escorchantes, principal causa da hipervalorização do real, esperar que os outros países aumentem os seus juros (“a situação de juros baixos no mercado internacional não é uma situação permanente. Portanto, os juros lá fora devem voltar a crescer e ajudar a taxa de câmbio doméstica a se desvalorizar”). Tombini acrescentou que “ninguém tem bola de cristal” (sic) para saber quando isso acontecerá.  Ainda bem. Agora estamos todos tranquilos.
 
Como os leitores sabem, não somos admiradores da política do sr. Luciano Coutinho no BNDES, mas ele tem toda razão ao declarar que “a apreciação da taxa de câmbio é nociva. Não podemos ser ingênuos. Temos que proteger a competitividade das empresas e a geração de empregos no Brasil”.


“METAS” 
Esse “método” de tratar a inflação é apenas um subproduto do que realmente interessa aos neoliberais: descarregar nos países dependentes as mercadorias dos monopólios multinacionais, desindustrializando ou impedindo a industrialização dessas economias, tornando-as mercados cativos.
 
Então, para que serve o “sistema de metas de inflação”?
 
Esse sistema pode ser resumido brevemente: estabelecida uma “meta” de inflação, qualquer desvio em relação a essa meta significa um aumento automático da taxa de juros básicos, isto é, da taxa que é o piso dos juros na economia. Naturalmente, o ganho com juros é, precisamente, a diferença entre sua taxa nominal e a inflação. Quanto maior essa diferença, maior o ganho dos bancos e demais especuladores. Quanto mais elevados os juros nominais e mais baixa a inflação, maiores os juros reais – que são o ganho dos que especulam com a dívida pública.

CONDIÇÕES 
Como elementos correlatos do “sistema”, estão uma série de condições - necessárias, segundo seus defensores, para que ele funcione. A mais peculiar delas é chamada “taxa natural de desemprego”, isto é, uma parcela da população (no Brasil há quem discuta se são seis, oito, dez, doze ou quinze milhões de pessoas) tem de estar permanentemente desempregada para que os salários não aumentem, pois isso causaria inflação...
 
Procuramos fornecer a descrição mais neutra que conseguimos desse maravilhoso sistema. Mas, continuemos.
 
O autor mais citado pelos defensores do “sistema” – e seu maior entusiasta – é o atual presidente do banco central (Fed) dos EUA, Ben Bernanke, co-autor de “Inflation Targeting: Lessons from the International Experience” (Princeton University Press, 1999).
 
Sendo assim, por que o banco central dos EUA jamais adotou, nem pretende adotar, qualquer sistema de “metas de inflação”?
 
Uma pergunta adicional: por que a União Econômica e Monetária Europeia exige dos países que pretendem adotar o euro que não usem esse “sistema”, inclusive obrigando a Finlândia e a Espanha a abandoná-lo? Na União Europeia, os únicos países que o usam são os que não adotaram o euro – a Inglaterra, cada vez mais uma colônia econômica norte-americana, e a Suécia, que seguia por esse caminho infeliz (com a crise, ambos foram obrigados a “ajustar” o sistema com uma colossal redução nos juros, pois os bancos ameaçavam levar-lhes até o que não é educado falar em público).
 
Mais uma pergunta adicional: por que o Japão não usa esse sistema?
 
A resposta a essas perguntas, certamente, não é a fornecida pelo sr. Bernanke: a de que esse sistema é bom para os outros, que têm inflação alta. Até porque, quando o então presidente do BC, Armínio Fraga, fez o país adotá-lo, a inflação não era alta no Brasil. A mesma coisa aconteceu nos outros países que adotaram o sistema: como lembrou recentemente o economista Yoshiaki Nakano, “esse sistema foi criado num contexto desinflacionário” (cf. Valor Econômico, 16/03/2011, grifo nosso). Não foi para combater a inflação, portanto, que ele foi instituído.
 
A resposta a essas perguntas, na verdade, tem mais relação com a carreira do sr. Fraga no Quantum Fund, de Soros e dos Rothschild, do que com a inflação.
 
Esse sistema é “desenhado” para que os bancos e fundos norte-americanos (os últimos, em geral, com sede oficial em lugares como as Cayman ou Curaçao) aumentem seus ganhos com os papéis da dívida de outros países. Ele é, meramente, uma forma de aumentar a drenagem de recursos, via juros, para os EUA. Certamente, também um fundo japonês poderá se beneficiar desse sistema no Brasil. O que os japoneses (e europeus) não querem é um sistema que beneficie (e escandalosamente) os bancos e fundos norte-americanos no Japão (ou na Europa do euro). Aliás, nem os norte-americanos querem um sistema que poderá beneficiar fundos e bancos de outros países nos EUA...
 
Qual o resultado desse sistema no Brasil?
 
Segundo o “Financial Times”, órgão da City londrina, em artigo publicado antes dos dois últimos aumentos de juros, “o capital internacional está submergindo o Brasil [pois os títulos] “fornecem uma taxa líquida de cerca de 11%. ‘Isto é mais alto do que você pode conseguir em qualquer outro lugar’, disse Kieran Curtis, administrador de fundos em mercados emergentes da Aviva Investors, que gerencia 1,3 bilhão de libras esterlinas em títulos de países emergentes” (cf. “Brazil ready to retaliate for US move in ‘currency war’”, FT, 04/11/2010).
 
As “metas” são um artifício para esticar, e haja esticamento, o ganho com os juros. O golpe (não encontramos palavra mais adequada) é estabelecer uma meta de inflação a mais baixa possível e uma taxa de juros a mais alta possível, e amputar o crescimento, o emprego, os salários, os lucros dos empresários produtivos, as despesas correntes, os gastos sociais, os investimentos - em suma, o Orçamento – para que se “adaptem” a essa esbórnia.
 
Por isso, a definição de qual é a “meta de inflação” nada tem a ver com a economia real, mas com os ganhos dos bancos e demais especuladores (se o leitor tiver humor para tanto, cf. a discussão, inteiramente maluca, sobre qual deve ser a “meta” na Inglaterra, no artigo de um professor que leciona em renomado templo neoliberal, a London School of Economics: Charles Bean, “The New UK Monetary Arrangements: A View from the Literature”, The Economic Journal, Londres, nov./1998).
 
Quando os bancos querem ganhar mais – e sempre querem – a “meta de inflação” torna-se insuficiente e passa-se a falar em “centro da meta”. Por exemplo, atualmente, no Brasil, a “meta de inflação” é uma faixa que vai de 2,5% a 6,5%. Mas, segundo a teoria importada pelo sr. Meirelles, o que interessa é o “centro da meta” (4,5%). Qualquer número que vá além desse “centro” demanda um aumento imediato de juros, não importa que a inflação esteja dentro da meta (como a de 5,9% que serviu de pretexto ao aumento de juros em janeiro, pelo Banco Central).
 
E, como a voracidade especulativa é insaciável, há os que pregam – como o atual presidente do BC - que a “meta” (e o “centro da meta”) tem de ser decrescente, portanto, tendente a zero. O fato de não existir crescimento capitalista com inflação zero não é um impedimento para esse tipo de estupidez. Nenhum deles está preocupado com o crescimento, o emprego, os salários – eles já garantiram os seus – e, muito menos, com a miséria.
 
Evidentemente, é tautológico que quanto mais irreal a “meta de inflação” (ou o “centro da meta”), mais probabilidade existe da realidade não se enquadrar a ela, portanto, do índice de inflação ser maior do que a meta ou o centro da meta - o que serve de pretexto para mais aumentos de juros.
 
Também pouco importa a inflação real, por mais baixa que seja. Segundo a diretoria do BC, o problema é o “cenário prospectivo” (a inflação de daqui a nove meses) - que sempre estará acima do “centro da meta” se os juros não forem aumentados agora...
 
Do mesmo modo, não importa a causa da inflação. Se o problema é a especulação com produtos primários (“commodities”) nos EUA, o “sistema de metas” aumenta os juros, como diz o professor Nakano, para “reprimir os demais preços das não commodities”, isto é, os preços que não tiveram elevação ou não tiveram influência na elevação da taxa de inflação.

FIM 
Na primeira parte deste artigo, prometemos apresentar um exemplo do vácuo mental do neoliberalismo. Os acontecimentos tornaram-no dispensável: tratava-se do anúncio de cortes orçamentários, feito pelo ministro da Fazenda, onde ele, literalmente, repetiu o relatório emitido em outubro pelo FMI até nas alterações terminológicas (“consolidação fiscal” ao invés de “ajuste fiscal”, etc.).
 
O neoliberalismo tem essa vantagem: não é preciso pensar, basta repetir.
 
Muita tinta – e saliva – foi dispendida, por exemplo (afinal, aí vai um exemplo...), em torno da famosa “relação dívida/PIB”, outro espantalho para que governos façam repasses bilionários aos bancos. Há alguns anos, o então ministro da Fazenda, Antonio Pallocci, declarou que eram necessários 10 anos com um “superávit primário” - isto é, um confisco do Orçamento para os bancos - de 4,25% do PIB (em números de 2010: R$ 156,2 bilhões) para reduzir essa “relação”. Não lhe passou pela cabeça, além da óbvia diminuição dos juros para poupar o país desse sacrifício, que é possível reduzir a “relação dívida/PIB” através do aumento do PIB, isto é, pelo crescimento - como apontam, há muito, até trabalhos econométricos com uma perspectiva completamente diferente da nossa (ver, p. ex., J.C.J. de Carvalho, “Tendência de Longo Prazo das Finanças Públicas no Brasil”, IPEA, maio/2001).
 
Entretanto, o neoliberalismo não é a primeira histeria reacionária que substitui ideias por uma ladainha de slogans. O nazismo também era assim. Se o leitor estranhou a referência, pedimos que lembre os milhões de seres humanos que morreram no desemprego e na fome durante os últimos 30 anos.
 
Mas talvez Paul Sweezy tenha razão ao dizer que, no ocaso do capitalismo monopolista, a reação deixou de ter uma ideologia – um conjunto de ideias que fornecia uma visão mais ou menos coerente, ainda que não essencialmente verdadeira, do mundo.
 
O neoliberalismo, portanto, é uma decomposição, uma putrefação ideológica. O fato dos acontecimentos – em especial aqueles do Leste europeu – ter-lhe dado, por debilitamento da oposição a ele no início dos anos 90, um destaque inesperado, não muda nem um pouco esse seu cunho de apodrecimento ideológico de um sistema apodrecido.
CL

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