quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Quem salvará o povo líbio dos seus salvadores ocidentais?



O físico belga Jean Bricmont é mais conhecido no Brasil pela autoria – com o matemático Alan Sokal – de Imposturas Intelectuais, o melhor livro até hoje escrito sobre a miséria dita “pós-modernista”, seu caráter reacionário, e, sobretudo, a sua abissal estupidez.

Bricmont é também autor de Impérialisme humanitaire. Droits de l’homme, droit d’ingérence, droit du plus fort? (Imperialismo humanitário. Direitos do homem, direito de ingerência, direito do mais forte?), título que dispensa maiores explicações sobre o seu conteúdo. O leitor poderá tomar conhecimento do resumo que Bricmont fez dessa obra em Le Grand Soir (www.legrandsoir.info). Por exemplo: “... Fallujah foi uma Guernica sem Picasso. Uma cidade de 300.000 almas, sem água, eletricidade e víveres, vazia dos seus habitantes, levados para campos de prisioneiros. Depois do bombardeio metódico, a tomada da cidade, quarteirão por quarteirão. Quando um hospital era ocupado, o New York Times justificava, dizendo que serviu como um centro de propaganda, inflando o número de vítimas. Exatamente, quantas são as vítimas da guerra no Iraque? Ninguém sabe, nem faz body count (dos iraquianos). Quando estimativas são publicadas, mesmo pelas revistas científicas mais renomadas, como a Lancet, elas são denunciadas como exageradas”.

Desde o começo da agressão à Líbia, Bricmont foi um dos intelectuais europeus que recusaram-se a trair a sua herança humanística. Não faremos comentários, por desnecessários, sobre o artigo que hoje reproduzimos, publicado em 18 de agosto último, escrito por Bricmont em parceria com a escritora norte-americana Diane Johnstone - autora de um livro fundamental sobre a agressão da Otan à Iugoslávia, Fools’ Crusade: Yugoslavia, Nato, and Western Delusions.

A tradução do artigo para o português é do site Resistir.info.
C.L. 
JEAN BRICMONT E DIANA JOHNSTONE

Lição de democracia. Em Março, uma coligação de potências ocidentais e de autocracia árabes uniram-se para promover o que era apresentado como uma espécie de pequena operação militar para “proteger os civis líbios”.
A 17 de Março, o Conselho de Segurança da ONU adotou a resolução 1973 que dava a esta “coligação de voluntários” um tanto particular o sinal verde para começar a sua pequena grega, controlando primeiro o espaço aéreo líbio, o que permitiu a seguir bombardear o que a OTAN quis bombardear. Os dirigentes da coligação esperavam manifestamente que os cidadãos líbios reconhecidos aproveitariam a ocasião fornecida por esta “proteção” vigorosa para derrubar Muamar Kadafi o qual, pretendia-se, queria “matar o seu próprio povo”. Baseando-se na ideia de que a Líbia estava dividida de modo claro entre “o povo” de um lado e “o mau ditador” do outro, esperava-se que este derrube ocorresse em alguns dias. Aos olhos ocidentais, Kadafi era um ditador pior que Ben Ali na Tunísia ou Mubarak no Egito, que caíram sem intervenção da OTAN. Kadafi deveria portanto cair muito mais rapidamente.
Cinco meses mais tarde, tornou-se evidente que todas as suposições nas quais se fundamentava esta guerra eram mais ou menos falsas. As organizações de defesa dos direitos do homem não conseguiram encontrar provas dos ditos “crimes contra a humanidade” cometidos por Kadafi contra “o seu próprio povo”. O reconhecimento do Conselho Nacional de Transição (CNT) como “único representante legítimo do povo líbio” por parte dos governos ocidentais, que era no mínimo prematuro, tornou-se grotesco. A OTAN empenhou-se numa guerra civil, exacerbando-a, e sem fazê-la sair do impasse.
Mas por mais absurda e destituída de justificação que esta guerra possa ser, ela continua. E quem é que pode travá-la?
Um dos melhores livros para ler neste Verão foi a excelente nova obra de Adam Hochschild, “To End All Wars”, sobre a Primeira Guerra Mundial e os movimentos pacifistas daquela época. Há muitas lições de atualidade que se podem encontrar neste livro, mas a mais pertinente é sem dúvida o fato de que uma vez começada uma guerra é muito difícil pará-la.
Os homens que começaram a primeira guerra mundial também pensavam que ela seria curta. Mas mesmo quando milhões de pessoas foram lançadas na tormenta assassina e quando o caráter absurdo do empreendimento tornou-se claro como água límpida, a guerra continuou durante quatro anos trágicos. A própria guerra engendra o ódio e uma vontade de retaliação. Quando uma grande potência começa uma guerra, ela “deve” ganhá-la, qualquer que seja o custo – para ela própria e sobretudo para os outros.

PILHAGEM

Até o presente, para os agressores da OTAN o custo da guerra contra a Líbia é puramente financeiro e isso é compensado pela esperança de uma pilhagem do país, quando ele for “libertado” e de que ele pagará para reembolsar aqueles que o bombardearam. Não é senão o povo líbio que perde vidas, bem como a sua infraestrutura.

Durante a primeira guerra mundial existia um corajoso movimento de oposição à guerra que enfrentou a histeria e o chauvinismo deste período e que advogava em favor da paz.  Seus membros arriscavam-se a ataques físicos, assim como à prisão. O modo como Hochchild conta a luta pela paz destes homens e destas mulheres na Grã-Bretanha deveria servir de inspiração – mas para quem? Os riscos implicados pela oposição à guerra na Líbia são mínimos em comparação com os que existiam quando da guerra de 1914-1918. Mas no momento, uma oposição ativa é apenas visível.

Isto é particularmente verdadeiro na França, país cujo presidente, Nicolas Sarkozy, teve a iniciativa de começar esta guerra.

Acumulam-se os testemunhos das mortes de civis líbios, inclusive crianças, provocadas pelos bombardeamentos da OTAN (ver, por exemplo, o vídeo http://www.youtube.com/watch?v=vtS2qJeeXUA).

Estes bombardeamentos visam a infraestrutura civil, a fim de privar a maioria da população que vive na parte do país leal a Kadafi dos bens de primeira necessidade, da alimentação e da água, a fim de pressionar o povo a derrubar Kadafi. A guerra para “proteger os civis” já se tornou uma guerra para aterrorizá-los e atormentá-los de modo a que o CNT apoiado pela OTAN possa tomar o poder.

Esta pequena guerra na Líbia mostra que a OTAN é ao mesmo tempo criminosa e incompetente.

Mas ela mostra igualmente que as organizações de esquerda nos países da OTAN são totalmente inúteis.

Provavelmente jamais houve uma guerra à qual fosse mais fácil opor-se. Mas a esquerda na Europa não se opõe.

Há três meses, quando a histeria midiática a propósito da Líbia foi lançada pela televisão do Qatar, Al-Jazeera, a esquerda não hesitou em tomar posição. Algumas dezenas de organizações de esquerda francesas e norte-africanas assinaram um apelo por “uma marcha de solidariedade com o povo líbio” em Paris, a 26 de Março (http://menilmontant.typepad.fr/7avous/2011/03/solidarite-ave...). Mostrando a sua total ausência de coerência, estas organizações exigiram, simultaneamente, por um lado “o reconhecimento do CNT, único representante legítimo do povo líbio” e, por outro, “a proteção dos residentes estrangeiros e dos migrantes” que, na realidade, deviam precisamente ser protegidos dos rebeldes representados por este conselho. Apoiando implicitamente operações militares de ajuda ao CNT, estes grupos apelavam também à “vigilância” a propósito da “duplicidade dos governos ocidentais e da Liga Árabe”, bem como a uma “escalada” possível das operações militares.

As organizações que assinavam este apelo incluíam grupos de oposições no exílio da Líbia, Síria, Tunísia, Marrocos e Argélia, assim como os Verdes franceses, o NPA, o Partido Comunista Francês, o Partido de Esquerda, o movimento antirracista MRAP, o partido dos Indígenas da República e o ATTAC. Estes grupos representavam praticamente tudo o que há de organizado à esquerda do Partido Socialista – que, pelo seu lado, (com exceção de Emmanueli) apoiava a guerra sem sequer fazer apelo à “vigilância”.

Agora que aumenta o número de vítimas civis dos bombardeamentos da NATO, não há nenhuma manifestação da vigilância prometida “a propósito da escalada da guerra” que saísse do quadro das resoluções do Conselho de Segurança da ONU.

Os militantes que, em Março, insistiam em dizer que “devemos fazer alguma coisa” para travar um massacre hipotético hoje nada fazem para travar um massacre que não é hipotético mas sim muito real e visível, e perpetrado exatamente porque aqueles “fizeram alguma coisa”.

O erro fundamental daqueles que, à esquerda, dizem “nós devemos fazer alguma coisa” reside na ambiguidade da palavra “nós”. Se eles querem dizer “nós” literalmente, então a única coisa que poderiam fazer seria por de pé espécies de brigadas internacionais para combater com os rebeldes. Mas naturalmente, apesar das grandes declarações segundo as quais “nós” devemos fazer “tudo” para apoiar o “povo líbio”, esta possibilidade nunca foi seriamente considerada.

Portanto o “nós” significa na prática as potências ocidentais, a OTAN e, sobretudo, os Estados Unidos, pois só eles possuem as “capacidades únicas” necessárias para travar uma tal guerra.

As pessoas que gritam “devemos fazer alguma coisa” geralmente misturam duas espécies de exigências: uma que podem esperar de modo realista ser aceite pelas potências ocidentais – apoio aos rebeldes, reconhecimento do CNT como único representante legítimo do povo líbio – e outra que não podem absolutamente esperar de modo realista que seja aceite pelas grandes potências e que são elas próprias totalmente incapazes de executar: limitar os bombardeamentos a alvos militares e à proteção dos civis, assim como permanecer escrupulosamente no quadro das resoluções da ONU.

CHEQUE EM BRANCO
 
Estes dois tipos de exigências contradizem-se uma à outra. Numa guerra civil, nenhuma das duas partes está preocupada principalmente com as sutilezas das resoluções da ONU ou com a proteção dos civis. Cada parte quer muito simplesmente ganhar e a vontade de retaliação leva muitas vezes a atrocidades. Se “apoia” os rebeldes, dá-se-lhes na prática um cheque em branco para fazer o que eles considerarem necessário a fim de ganhar a guerra.

Mas dá-se igualmente um cheque em branco aos aliados ocidentais e à OTAN, que talvez estejam menos ávidos de sangue que os rebeldes mas que têm à sua disposição meios de destruição muito maiores. E a OTAN é uma imensa burocracia – um dos fins essenciais da mesma é sobreviver.  Ela deve absolutamente ganhar, senão terá um problema de “credibilidade”, assim como os políticos que apoiaram esta guerra. E este problema poderia levar a uma perda de financiamento e de recursos. Uma vez que a guerra começou não há simplesmente nenhuma força no Ocidente, na ausência de movimentos antiguerra determinados, que possa obrigar a OTAN a limitar-se ao que é autorizado pelas resoluções da ONU. Em consequência, a segunda espécie de exigências da esquerda cai na orelha de um surdo. Estas exigências servem simplesmente para provar que a esquerda pró intervenção tem intenções puras.

Ao “apoiar” os rebeldes, esta esquerda matou de fato o movimento anti-guerra. Com efeito, não tem sentido apoiar numa guerra civil um campo que quer desesperadamente ser ajudado por intervenções externas e, ao mesmo tempo, opor-se a tais intervenções. À direita pró intervenção é bem mais coerente.

O que a esquerda e a direita pró intervenção têm em comum é a convicção de que “nós” (isto é, “o ocidente democrático civilizado”) temos o direito e a capacidade de impor nossa vontade a outros países. Certos movimentos franceses (como o MRAP) que vivem literalmente da exploração da culpabilidade a propósito do racismo e do colonialismo, parecem ter esquecido que muitas das conquistas coloniais foram feitas contra sátrapas, príncipes indianos e reis africanos que eram denunciados como autocratas (o que de fato eram) e não parecem dar-se conta de que há alguma coisa de um tanto incongruente, para organizações francesas, em decidir quem são os “representantes legítimos” do povo líbio.

Apesar dos esforços de alguns indivíduos isolados, nenhum movimento popular na Europa é capaz de travar ou mesmo enfraquecer o ataque da OTAN. A única esperança poderia ser um colapso dos rebeldes, ou uma oposição nos Estados Unidos, ou uma decisão da parte das oligarquias dominantes de limitar as despesas. Enquanto isso, a esquerda europeia perdeu uma ocasião de renascer opondo-se a uma das guerras manifestamente mais injustificáveis da história. A Europa inteira sofrerá com esta derrota moral.

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