sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Neutralidade ou liberdade?

A economia digital é tão legítima quanto qualquer outra. O que sempre me incomodou foi a camuflagem da linguagem libertadora com a qual os agentes dessa economia conseguiram (e ainda conseguem) persuadir muita gente. Basta ver a reação dos gurus e dos adeptos do Creative Comons contra a ministra Ana de Hollanda, simplesmente porque ela tomou a certeira atitude de retirar essa licença privada e que representa o novo sistema de copyright estadunidense, do portal do MinC 
FLÁVIO PAIVA *

Felizmente o entendimento de que o uso da internet não é nenhum mistério reservado a iniciados está tomando forma. Aquela conversa de gratuidade, de cultura livre, de princípio colaborativo, de parque tecnológico virtual e de mídia radicalmente democrática já não ilude tanto quanto antes. Isso é positivo porque coloca o debate em um plano mais próximo do real, portanto, mais fácil de possibilitar a descoberta de soluções necessárias ao melhor aproveitamento das maravilhas advindas desse instrumento da evolução digital.
 
A desmistificação da parte mantida em situação de doutrina pelos lobistas das corporações de informática e de venda de conteúdos começa a acontecer pelos próprios fatos. A competição acirrada entre as novas multinacionais que disputam o mercado de usuários de internet já não deixa dúvidas do que é retórica e o que é de vera. As pessoas estão despertando para o fato de que as moedas virtuais utilizadas para a compra de “armas” e de “vidas” em jogos eletrônicos caem na conta no final do mês.
 
O que parecia alguma dádiva dos deuses e dos gurus da “cultura digital” tem se tornado um evidente campo de batalha de novos negócios. Com cerca de nove milhões de usuários no Brasil o Facebook deita e rola na nossa ignorância sobre a nova economia, exorbitando preços de anúncios no País, que só perdem para a publicidade e propaganda veiculada pela multinacional de serviços de relacionamentos em suas filiais russa e australiana (FSP, Mercado, 10/01/2011). Sem contar com a fonte de receita originada no comércio de perfis de usuários.
 
A economia digital é tão legítima quanto qualquer outra. O que sempre me incomodou foi a camuflagem da linguagem libertadora com a qual os agentes dessa economia conseguiram (e ainda conseguem) persuadir muita gente. Desfazer esse engodo continua não sendo fácil. Basta ver a reação dos gurus (consultores) e dos adeptos (abduzidos) do Creative Comons (CC) contra a ministra Ana de Hollanda, simplesmente porque ela tomou a certeira atitude de retirar essa licença privada e que representa o novo sistema de copyright estadunidense, do portal do Ministério da Cultura (MinC).
 
A hipnose instalada pela falsa consciência compulsória da “cultura digital” era tão grande que até bem pouco tempo atrás nem pessoas do meio cultural conseguiam perceber de modo inteligível o mínimo conflito de interesse existente na prática do então ministro Gilberto Gil, que submeteu o governo brasileiro ao vexame de chegar a adotar oficialmente o CC, no momento em que como artista era patrocinado (turnê Banda Larga Cordel) por uma empresa de telefonia – uma das áreas mais interessadas na desapropriação autoral, como meio para baixar custos e lucrar mais na oferta de produtos culturais.
 
Fico contente quando tomo conhecimento de depoimentos públicos de artistas mais antenados e desassombrados, como o andarilho franco-espanhol Manu Chao, sobre os abusos da nova ordem digital: “YouTube? São ladrões. Eles ganham grana com a sua obra, e não é justo. Mas qual é o Estado que mexe com o YouTube, para proteger a vida pessoal, ou a obra dos artistas? E aí o YouTube segue fazendo grana com isso (…) Se tudo é livre para todo mundo, tudo bem. Mas e se alguém está fazendo grana com isso?” (OESP, 09/02/2011).
 
Gilberto Gil, que já não é mais ministro, abriu com sua foto uma campanha lançada no início deste mês, vendendo inclusive faixas avulsas de música para celular (www.escute.com). “Artistas, gravadoras e fãs falando a mesma letra (…) por um preço pequenininho e dentro da lei”, diz a peça publicitária da camaleônica indústria fonográfica (FSP, 06/02/2011). É com relação a esses fatos, ao que há de explícito neles, que noto as coisas clareando para dar densidade ao debate.
 
As discussões sobre internet há muito precisavam de uma base de referências para facilitar a construção do seu Marco Civil. Sem essa clareza a regulação estatal, conduzida pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), poderia sair com direitos e responsabilidades de mais ou de menos. O usuário, pessoa física ou jurídica, tenderia a sair prejudicado. Posta como um novo paradigma nas revelações em rede, a internet como ela é (e não como vinha sendo vendida pelos lobistas) abre um mundo de oportunidades nos planos culturais, econômicos e políticos.
 
“A chance de ganhar muito com pouco investimento e pequena infraestrutura” (DN, 13/02/2011) é um campo que está aberto aos mais variados tipos de empreendedores e empreendimentos. Atentas a isso, muitas agências de publicidade vêm se especializando em negócios online. E não somente agências. Portais de compras, com promoções em pacotes de descontos superespeciais, como o Barato Coletivo, estão atuando com bastante sucesso em muitas cidades do mundo.
 
No campo do ativismo político, a força de articulação em rede tem demonstrado boa eficiência, sobretudo em casos de Estados fechados, como ocorre no norte da África. No mundo dito democrático a internet também está interferindo no jogo do poder. Tanto que a Casa Branca está preparando um projeto de lei que autorize o Estado a fazer grampo nas redes de relacionamento e nos serviços de texto e voz (FSP, 05/01/2011), acesso hoje reservado apenas aos negócios da esfera privada.
 
As investidas desconcertantes do WikiLeaks (portal que compartilha documentos secretos oficiais) teriam sido a gota d’água para a quebra do compromisso de campanha do presidente Barack Obama com relação à neutralidade na internet. Ou seja: na perspectiva de encontrar uma saída para a crise do capitalismo, o governo norte-americano se comprometera que o Estado não interviria na internet. Entretanto, a crise foi tão avassaladora que ele interveio na economia, estatizando empresas como a General Motors (GM) e agora está se mexendo para intervir na internet por razões políticas estratégicas.
 
Garantir a neutralidade seria bancar o tráfego de dados sem quaisquer interferências que afetassem a economia, no melhor estilo neoliberal, deixando que o mercado se regule em nome do atendimento “aos desejos e necessidades dos consumidores”. Isso seria descolar a internet do próprio contexto que a gerou, o que cairia em total artificialismo, embora saibamos que uma parte de nós é o que somos e a outra parte o que somos submetidos a ser por pressão das forças econômicas, políticas e culturais.
 
A nova configuração geopolítica mundial não permite essa maquiagem. Diante do que se consegue enxergar da realidade movida pelos impulsos da internet, acredito que tratar a questão no âmbito do Estado Democrático de Direito é bem mais adequado, uma vez que os interesses sociais devem ser considerados acima dos interesses econômicos. Por não terem sido tratadas assim desde o início as infovias facilitaram toda sorte de mau uso da internet, como os já tradicionais escândalos de pedofilia e, mais recentemente, a venda de drogas por estímulos bineurais, protegida por um discurso de proteção à não discriminação de conteúdos e da livre concorrência.
 
Concordo que as transformações em processo na atualidade até requeiram uma nova geração de leis. Como nada é neutro na vida, a minha expectativa é que os legisladores ao invés de se deterem nos adornos da neutralidade adotem o princípio da liberdade, que considera o próximo na hora de calibrar o que pode e o que não pode. Afinal, as infovias são logradouros virtuais e como tal, só precisam de alguns semáforos, faixas de pedestre e uma boa qualidade de trânsito. É o mínimo para regular a vida em sociedade. Mais dia, menos dia, chegaremos ao óbvio.
* Publicado originalmente no Diário do Nordeste
hp

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