sábado, 2 de julho de 2011

BC advoga arrocho salarial e diz que juros vão continuar subindo

Alvo é o salário deste ano e o mínimo de 2012

Estimado leitor, vamos fazer um exercício. Leia, por gentileza, com atenção:
“... um risco muito importante para a dinâmica dos preços advém da dinâmica dos salários. (…) os aumentos previstos para o salário mínimo nos próximos anos podem impactar direta e/ou indiretamente a dinâmica dos preços. (…) [o salário mínimo] em termos reais, aumentou 76,5% no período amostral”.

A última parte é uma mentira e um ato falho. No “período amostral” (2003-2011), o aumento real do salário mínimo foi 52,83%. A percentagem citada é o INPC - que, pela lei, corrige o salário mínimo - do mesmo período (v. Dieese, “Nota Técnica nº 93”). Logo, se dependesse dos autores do texto, nem a inflação pelo INPC seria reposta no salário mínimo – ou, com boa vontade na interpretação do ato falho, só esta seria reposta, com aumento real zero.

Mas, continuemos o nosso exercício:
“... um risco muito importante reside na possibilidade de aumentos de salários incompatíveis com o crescimento da produtividade e suas repercussões negativas sobre a dinâmica da inflação”.
Ou, ainda:

Um aspecto crucial é a possibilidade de que o aquecimento no mercado de trabalho leve à concessão de aumentos reais dos salários em níveis não compatíveis com o crescimento da produtividade, o que, (…) aparentemente tem ocorrido em certos setores. (…) cumpre registrar que a teoria, no que é respaldada pela experiência internacional, evidencia que moderação salarial constitui elemento-chave para a obtenção de um ambiente macroeconômico com estabilidade de preços”.

“Teoria”? “Respaldada pela experiência internacional”? Que teoria? Que experiência internacional? Onde? Quando? Em que planeta? Nessa hora o “livre mercado” não serve para o mercado de trabalho?
Mas o nosso exercício é o seguinte: quem escreveu isso?

Teria sido Joaquim Murtinho, ministro da Fazenda de Campos Sales, que, em 1898, depois de tesourar o Orçamento, defendeu (e praticou, até 1902) que o suprassumo do combate à inflação estava em reduzir os salários reais?

Ou Eugênio Gudin, a múmia que, em 1954, ministro da Fazenda de Café Filho, pregou que a causa da inflação era o salário mínimo muito alto – e até a própria existência do salário mínimo, pois, “a Humanidade está longe de poder atingir esses padrões mínimos”?

Ou, talvez, Roberto Campos, o notório Bob Fields, ministro da ditadura que, em nome do combate à inflação, proibiu que os empresários concedessem reajustes ou aumentos aos seus empregados?

Não, leitor. Murtinho, Gudin e Fields não saíram dos seus sarcófagos. Na área econômica, todos os patifes são iguais – um dia vão propor um choque de gestão para o Brasil: as capitanias hereditárias.
Os trechos acima vieram à luz quarta-feira, no Relatório Trimestral de Inflação do Banco Central.

Está evidente o alvo: o salário mínimo do ano que vem e os salários em geral a partir deste ano. Somos obrigados a lembrar o que já está, há muito, superado pela luta do povo brasileiro.

Os reajustes e aumentos salariais têm relação, como todo mundo sabe, com a inflação. Seu objetivo é repor a perda no poder aquisitivo dos salários de um ano para outro – em outras palavras, impedir que o salário real seja reduzido.

Naturalmente, os trabalhadores lutam para que haja não apenas uma reposição, mas um aumento de seu poder aquisitivo, isto é, para que seu salário tenha aumento além do reajuste da inflação – não somente porque a próxima negociação salarial só vai ser um ano depois, mas também porque trabalhadores e empresários sabem que os assalariados são os consumidores. Se o salário real permanecer o mesmo, como o mercado poderá absorver o aumento de produção das empresas, sem uma depressão, uma derrubada nos lucros dessas empresas?

Aumento de salário, portanto, ao repor a inflação e levar em conta a “produtividade”, isto é, o aumento da produção por trabalhador em determinado intervalo de tempo, não é causa de inflação – é consequência, disse em 1977 um líder operário de nome Luiz Inácio da Silva, conhecido por Lula. Na época, ele reivindicava a reposição da inflação de 1973 nos salários, depois que se descobriu o falseamento do índice daquele ano.

No entanto, o BC regrediu a 1898, adotando a tese de Murtinho (por sinal, diretamente ligada ao seu racismo, segundo o qual, indústria e salários decentes eram para “a raça anglo-saxã”). E adicionou o morfético toque de Gudin: o salário mínimo aumentou demais, e, em 2012, quando, pela lei, terá de incorporar o crescimento do PIB de 2010 (7,5%), vai ser um horror.

Qual o significado de “salários em níveis não compatíveis com o crescimento da produtividade”? Desde quando isso existe? Um aumento salarial pode incorporar o crescimento da produtividade que já houve. Não pode ser incompatível com esse crescimento da produtividade. No mundo - exceto, talvez, na diretoria do BC - nunca houve aumento de salário “não compatível” com o crescimento da produtividade. O principal estímulo para que as empresas aumentem sua produtividade é, exatamente, manter e aumentar os lucros, compensando o aumento dos salários - e aproveitando este para vender mais .

No caso do Brasil, é justo mencionar, como disse o presidente da CUT, Artur Henrique, que “no período de quase 20 anos entre 1989 e 2008, a produtividade da indústria aumentou 84%, enquanto no mesmo espaço de tempo a renda média dos salários caiu 37 pontos”.
Além disso, hoje há um consenso raro entre trabalhadores e empresários sobre qual é o obstáculo ao aumento da produtividade no país: a invasão de mercadorias importadas, provocada pelo dumping cambial que os juros altos do BC proporcionam a elas, reduzindo artificialmente seus preços em relação à produção interna (v. Fiesp, “A produtividade do trabalho na indústria de transformação”, maio/2011).

Portanto, não é por causa da inflação nem da “produtividade” que o BC quer reduzir os salários reais, inclusive rasgar a lei do salário mínimo no próximo ano.

O problema é que nunca houve, em país algum, uma desnacionalização da economia em que, logo depois, as multinacionais não tentassem arrochar os salários. Foi o que aconteceu aqui na década de 60 – levando, inclusive, a um golpe de Estado.

Além disso, os sequazes da desnacionalização, do “investimento direto estrangeiro”, da compra de empresas nacionais por empresas estrangeiras, com o sr. Mantega de corifeu, querem atrair mais monopólios externos para dentro do país – sobretudo agora, quando colocaram as contas externas em risco, exatamente com essa política, e querem cobrir o rombo que abriram nelas com esse “investimento direto estrangeiro”. O que atrai as multinacionais, mais do que salários achatados? Somente a queda em salários já achatados.

O Relatório Trimestral de Inflação é uma obra de vigarice incomum até para a diretoria do BC. Por exemplo, a palavra “moderação” é usada 43 vezes, “moderado”, 10 vezes; e “moderada”, 4 vezes. Tudo tem que ser “moderado” ou sofrer “moderação”: os salários, o crescimento, o crédito, o consumo, o mercado de trabalho, a “atividade doméstica”, a economia em geral - e o escambau.

Só há duas coisas em que não pode haver “moderação”:

1) Nos juros, que têm de ser aumentados mais ainda (“a implementação de ajustes das condições monetárias por um período suficientemente prolongado continua sendo a estratégia mais adequada”).

2) Nas importações (“... o crescimento das importações sendo relevante para atenuar o descompasso entre a demanda e a oferta agregada”).

Naturalmente, não há prova desse “descompasso” - porque ele não existe. Nem de que os aumentos de juros sejam adequados para algo que não seja os ganhos dos bancos e a derrubada do crescimento.

E, assim, o sujeito simples, mas de bom senso, perguntaria: onde está a polícia, que não vê isso?

CARLOS LOPES


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