quinta-feira, 15 de março de 2012

Crucifixo cassado e caçado: que símbolo mesmo está indo para a lata do lixo?

 

Leiam um artigo do notável do jurista gaúcho Paulo

Brossard, ex-ministro do STF, sobre a retirada dos

crucifixos dos tribunais do Rio Grande do Sul. Foi

publicado na edição desta segunda do Zero Hora.


Tempos apocalípticos



Minha filha Magda me advertiu de que estamos a viver

tempos do Apocalipse sem nos darmos conta; semana

passada, certifiquei-me do acerto da sua observação, ao

ler a notícia de que o douto Conselho da Magistratura

do Tribunal de Justiça do Estado, atendendo postulação

de ONG representante de opção sexual minoritária, em

decisão administrativa, unânime, resolvera determinar a

retirada de crucifixos porventura existentes em prédios

do Poder Judiciário estadual, decisão essa que seria

homologada pelo Tribunal. Seria este “o caminho que

responde aos princípios constitucionais republicanos

de Estado laico” e da separação entre Igreja e Estado.

Tenho para mim tratar-se de um equívoco, pois desde a
adoção da República o Estado é laico e a separação
entre Igreja e Estado não é novidade da Constituição de

1988, data de 7 de janeiro de 1890, Decreto 119-A, da
lavra do ministro Rui Barbosa, que, de longa data, se
batia pela liberdade dos cultos. Desde então, sem
solução de continuidade, todas as Constituições,
inclusive as bastardas, têm reiterado o princípio hoje
centenário, o que não impediu que o histórico defensor
da liberdade dos cultos e da separação entre Igreja e
Estado sustentasse que “a nossa lei constitucional não
é antirreligiosa, nem irreligiosa”.

É hora de voltar ao assunto. Disse há pouco que estava
a ocorrer um engano. A meu juízo, os crucifixos
existentes nas salas de julgamento do Tribunal lá não se
encontram em reverência a uma das pessoas da
Santíssima Trindade, segundo a teologia cristã, mas a
alguém que foi acusado, processado, julgado,
condenado e executado, enfim justiçado até sua
crucificação, com ofensa às regras legais históricas, e,
por fim, ainda vítima de pusilanimidade de Pilatos, que
tendo consciência da inocência do perseguido, preferiu
lavar as mãos, e com isso passar à História.

Em todas as salas onde existe a figura de Cristo, é
sempre como o injustiçado que aparece, e nunca em
outra postura, fosse nas bodas de Caná, entre os
sacerdotes no templo, ou com seus discípulos na ceia
que Leonardo Da Vinci imortalizou. No seu artigo “O
justo e a justiça política”, publicado na Sexta-feira Santa
de 1899, Rui Barbosa salienta que “por seis julgamentos
passou Cristo, três às mãos dos judeus, três às dos
romanos, e em nenhum teve um juiz”… e, adiante, “não
há tribunais, que bastem, para abrigar o direito, quando
o dever se ausenta da consciência dos magistrados”.  

Em todas as fases do processo, ocorreu sempre a
preterição das formalidades legais. Em outras palavras,
o processo, do início ao fim, infringiu o que em
linguagem atual se denomina o devido processo legal. O
crucifixo está nos tribunais não porque Jesus fosse uma
divindade, mas porque foi vítima da maior das
falsidades de justiça pervertida.

Não é tudo. Pilatos ficou na história como o protótipo
do juiz covarde. É deste modo que, há mais de cem
anos, Rui concluiu seu artigo, “como quer te chames,
prevaricação judiciária, não escaparás ao ferrete de
Pilatos! O bom ladrão salvou-se. Mas não há salvação
para o juiz covarde”.

Faz mais de 60 anos que frequento o Tribunal gaúcho,
dele recebi a distinção de fazer-me uma vez seu
advogado perante o STF, e em seu seio encontrei juízes
notáveis. Um deles chamava-se Isaac Soibelman Melzer.
Não era cristão e, ao que sei, o crucifixo não o impediu
de ser o modelar juiz que foi e que me apraz lembrar em
homenagem à sua memória. Outrossim, não sei se a
retirada do crucifixo vai melhorar o quilate de algum dos
menos bons.

Por derradeiro, confesso que me surpreende a
circunstância de ter sido uma ONG de lésbicas que
tenha obtido a escarninha medida em causa. A
propósito, alguém lembrou se a mesma entidade não iria
propor a retirada de “Deus” do preâmbulo da
Constituição nem a demolição do Cristo que domina os
céus do Rio de Janeiro durante os dias e todas as
noites.

Nenhum comentário: