sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Previdência, crescimento e as vozes neoliberais do além

Na quarta-feira, em entrevista, o presidente da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (ANFIP), Jorge Cezar Costa, estranhou o silêncio sepulcral da mídia diante da declaração do ministro da Previdência Social, Carlos Eduardo Gabas, de que a Previdência está em seu oitavo mês seguido de superávit e não necessita de mudanças, pois é plenamente sustentável. “Por que se insiste em falar de déficit, se o próprio ministro da Previdência, com base nos números da arrecadação, comprova que ele não existe?”, disse o presidente da ANFIP.

Jorge Cezar Costa frisou que um estudo da ANFIP demonstrou que na maior parte dos municípios brasileiros, a quantia total recebida pelos beneficiários da Previdência é maior do que a arrecadação do FPM – Fundo de Participação dos Municípios (os recursos do Imposto de Renda e Imposto sobre Produtos Industrializados, IPI, que são repassados pela União ao município): “A economia dessas localidades é sustentada pelos aposentados do regime geral de Previdência, que têm crédito no comércio e garantem a sobrevivência das pequenas cidades”.

Tentaremos, neste segundo artigo sobre a Previdência, contribuir para a resposta à questão: “por que se insiste em falar de déficit da Previdência, e até em estouro das contas, quando ele não existe?”.
Antes, permita-nos o leitor um breve interlúdio.
 
A TREVA
 
Quando o senso comum deixa de ser bom senso, é sinal de que estamos vivendo numa era de trevas. Porém, ao contrário da Idade Média, o neoliberalismo não teve 9 ou 10 séculos de glória. Em algum momento, num futuro próximo, os tempos que vivemos a partir da década de 90 até o início do governo Lula serão conhecidos como a era da estupidez. Não cabe surpresa quando constatamos que ainda há resquícios dessa época – alguns bastante extensos – até entre aqueles que se opuseram ao obscurantismo de dois mandatos tucanos. Não é fácil, depois do bombardeio midiático que caiu sobre nosso país durante anos, jogar esse fardo no lixo. No entanto, não há coisa melhor a se fazer com ele.

Vejamos algumas coisas óbvias: alguém, em algum momento, antes desses tempos, pensou que seria razoável ter um banco central “autônomo” ou “independente” do governo eleito pelo povo, isto é, um BC antagônico à democracia, para implementar uma política monetária sem levar em consideração a vontade dos eleitores, na verdade, contra ela, pois, se não fosse assim, que necessidade haveria dessa “independência” em relação às urnas?

Mesmo nos EUA, que têm um banco central privado desde 1913 – o autor do projeto foi o genro de John D. Rockefeller, senador Nelson Aldrich - o presidente Roosevelt, para recuperar o país, na prática interveio no Fed, depois que seu “governor”, Eugene R. Black, em 1934, se opôs ao aumento de salários e preços instituído pelo National Recovery Act (cf. D. R. Wells, “The Federal Reserve System, a history”, McFarland Publishers, 2004, pág. 67).

Roosevelt colocou no lugar de Black o até então assessor do secretário do Tesouro, Marriner S. Eccles, um empresário que tinha a grande virtude de acreditar que a política monetária (isto é, os juros e a emissão de moeda) deveria estar a serviço da política econômica – da qual, evidentemente, faz parte - e não o contrário. Eccles era também banqueiro (e republicano), mas deixou por escrito, em suas memórias, o que achava da crise de 1929:

“Se tivesse havido uma melhor distribuição das rendas do produto nacional - em outras palavras, se tivesse havido menos ganhos nos negócios e para os grupos de mais altas rendas e mais renda para os grupos mais pobres - teríamos tido uma estabilidade muito maior em nossa economia. Tivessem, por exemplo, os seis bilhões de dólares, que foram aplicados por corporações e indivíduos ricos na especulação da bolsa de valores, sido distribuídos ao público, sob a forma de preços mais baixos e salários mais altos, com menos lucros para as corporações e os abastados, isso teria impedido ou moderado enormemente o colapso econômico que começou no final de 1929” (Eccles, “Beckoning Frontiers”, 1951).

Portanto, era um banqueiro – e presidente de banco central – diferente. Apesar de jamais ter pisado numa faculdade de economia (nunca fez um curso universitário), redigiu pessoalmente a lei de reforma do Fed e o dirigiu até a segunda metade da década de 40. Mas, o que verdadeiramente importa é que, no melhor governo dos EUA, não havia “independência” do seu banco central em relação a quem foi eleito – os únicos momentos em que o Fed se comportou “independentemente” durante a administração Roosevelt foram “em 1936 e 1937, com resultados desastrosos” ( D. R. Wells, op. cit., pág. 69, grifo nosso).

Em suma, o “banco central independente” é meramente uma trapaça ditatorial para que a política monetária do país esteja sempre sob domínio dos bancos – e não estamos falando do Itaú ou do Bradesco, mas do JP Morgan Chase, do BankBoston, do Bank of America, etc. - não importa que programa ou que candidato o povo tenha escolhido nas eleições.

CRESCIMENTO

Algo análogo acontece com a Previdência. Como o “senso comum”, hoje em dia, é o senso fabricado - e imposto, quando ela consegue - pela mídia, temos um magote de elementos repetindo que a Previdência é inviável porque, com o aumento do tempo de vida, teremos cada vez mais trabalhadores inativos – isto é, recebendo benefícios - e cada vez menos trabalhadores ativos – isto é, contribuintes para o sistema previdenciário.

Em resumo, o aumento do tempo de vida seria uma desgraça. O período maior de alforria que ele concederia ao trabalhador que consegue se aposentar, teria que ser diminuído - no limite, extinto - pelo prolongamento do período de trabalho, sob pena do aposentado viver na miséria e na aflição, pois o sistema previdenciário público, que lhe paga a aposentadoria depois de décadas de contribuição, seria insustentável. Logo, supõe-se, o melhor é que a expectativa de vida continuasse a mesma do século XIX – ou até antes.

No artigo anterior, abordamos essa questão da suposta, e falsa, “insustentabilidade” da Previdência do ponto de vista das contas da Seguridade Social no Brasil, expondo a sua plena sustentabilidade – e a plena viabilidade, diante dessas contas, do aumento de salário mínimo para R$ 580.

Restaria agora dizer que mesmo as projeções demográficas mais conservadoras (isto é, aquelas que projetam para o futuro uma evolução populacional exatamente igual a dos últimos anos, como se os acontecimentos econômicos e sociais não a alterassem) não apontam catástrofe alguma para a Previdência nos próximos 10 anos: “pelo menos até 2.020 as mudanças concentrar-se-ão na diminuição relativa da população infantil, muito mais do que no aumento da população idosa” (Leda Maria Paulani, “Seguridade Social, regimes previdenciários e padrão de acumulação: uma nota teórica e uma reflexão sobre o Brasil”, in “Previdência Social: como incluir os excluídos?”, org. E. Fagnani, W. Henrique e C. G. Lúcio, ed. LTr, 2008, pág. 28).

Por essa razão, as projeções dos enxugadores de gelo e privatistas previdenciários passaram a ir até o ano 2.050. Com esse método é possível fazer com que as projeções demográficas provem qualquer coisa, sobretudo o que elas não provam...(1)

Porém, há uma questão de fundo que nós ainda não abordamos: desde quando a ideia da Previdência Social é a de que as aposentadorias correspondem diretamente, linearmente, às contribuições? Em outras palavras: desde quando a Previdência Social foi construída para ser sustentada somente pelos que contribuem para ela?

Eis um embuste tipicamente neoliberal. Quando Bismarck (que não era um campeão do progresso, muito menos da causa dos trabalhadores) estabeleceu na Alemanha o primeiro sistema de Previdência Social, colocou o Estado como a terceira parte no financiamento, ao lado dos empregadores e dos empregados, exatamente porque presumia-se que as contribuições destes poderiam ser insuficientes para sustentar o sistema. Caso contrário, não haveria necessidade da participação do Estado.

Todos os sistemas posteriores, em todos os países, inclusive no Brasil, seguiram o mesmo caminho. Note-se: o papel do Estado não era cobrir déficits. Simplesmente a noção de déficit, em relação à Previdência, não existia. Usando um exemplo já lembrado no artigo anterior: o Estado investe, isto é, gasta com Educação e Saúde. No entanto, ninguém diz que a Educação ou a Saúde são “deficitárias”. Por que a Previdência, setor tão ou mais social do que a Educação e a Saúde, seria diferente?
Evidentemente, a questão que determinava essa concepção - na Alemanha, na Inglaterra, no Brasil, na França, nos EUA de Roosevelt (que em 1935 colocou em uso a expressão “Seguridade Social”, ao lançar o “Social Security Act”) - era o crescimento do país. A Previdência Social, pública, não somente devia ter como base o crescimento, como, também, deveria ajudar esse crescimento, expandindo o mercado interno, isto é, a capacidade aquisitiva de uma parcela imensa da população para os produtos da indústria e da agricultura.

O Estado, ao gastar com a Previdência, está investindo no crescimento.
 
ESPECULAÇÃO 
Certamente, a Previdência Social, menos ainda no Brasil, não foi elaborada para conviver com governos que afundam a economia nacional. Mas o povo de uma nação também não se formou para conviver com o seu próprio genocídio econômico.

No entanto, o neoliberalismo, como ideologia vagabunda da agiotagem, tem o grande ideal (?!) de que o Estado nada gaste com o povo que paga os impostos, pois o Tesouro e o Orçamento devem ser fontes só acessíveis aos monopólios financeiros – em suma, o negócio do neoliberalismo é a especulação, não a produção, e menos ainda o emprego, inerente a esta última.

Nenhum brasileiro precisa de teoria para saber disso, pois tivemos oito anos de fernandos-henriques, josés-serras, sérgios-mottas, ricardos-sérgios e outras aberrações.

Mesmo assim, vale a pena reproduzir, resumidamente, algumas observações da professora Leda Paulani, no texto que citamos, sobre os “dois tipos distintos de sistemas” de previdência:

“Três princípios básicos caracterizam [o primeiro regime], que tem no sistema previdenciário público seu instrumento de atuação: a universalidade do benefício, a participação do Estado dentro do esquema tripartite de sustentação financeira (empregados, empregadores e Estado) e a solidariedade intergeracional (quem trabalha gera renda também para quem já trabalhou). (…) Todos esses princípios estão ligados entre si e conformam uma dinâmica que é impulsionadora do crescimento e joga ao lado da valorização produtiva do capital e da distribuição de renda. Assim, o sistema será tão mais equilibrado do ponto de vista financeiro (…) quanto maiores forem o emprego, a renda, o nível do salário médio real e, por consequência, a participação dos salários na renda. Ao contrário, se emprego e renda ficam estagnados ou decrescem e/ou se o salário médio real cai substantivamente, seu equilíbrio fica prejudicado.

“O segundo regime, de caráter privado e restrito, reforça o vínculo entre contribuição e benefício e, contrariamente ao sistema anterior, joga contra o crescimento econômico e ao lado da valorização financeira. (…) Os gestores, gostando ou não, têm que fazer o jogo da acumulação financeira, buscando o maior rendimento possível. Lastreados em papéis públicos, eles têm, portanto, todo o interesse na manutenção de elevadas taxas reais de juros. Possuindo ações e debêntures, eles jogam do lado de salários deprimidos e politicas de downsizing [reestruturação através de demissões], já que são as empresas que adotam essas práticas as que prometem maior lucratividade e têm maiores possibilidades de ver seus papéis valorizados nas bolsas. (…) se [no primeiro sistema] a previdência joga no sentido da redução das taxas de juros e da elevação dos níveis de crescimento, emprego e renda, impulsionando a valorização produtiva do capital, [no segundo sistema] a previdência muda de time e passa a jogar do lado contrário, impulsionando a valorização financeira. Do ponto de vista da dinâmica de crescimento [esse segundo sistema] é pior do que pró-cíclico, pois ele é neutro quando a maré é favorável, mas joga completamente contra, quando os ventos empurram a economia ladeira abaixo (e isso é tanto mais verdadeiro quanto maior for o peso dos ativos carregados pelos fundos de pensão)” (Paulani, op. cit., págs. 24 e 25, grifo nosso).

EQUILÍBRIO 
Grifamos o trecho acima porque aquilo que aconteceu com a Previdência no governo Fernando Henrique – e o seu oposto, isto é, a recuperação da Previdência no governo Lula, sobretudo a partir de 2006 – é a exata confirmação de sua verdade.

Como retrata a “Análise da Seguridade Social em 2009”:
“... o desemprego termina a década [de 80] num patamar de 3%. Mas, de 1990 a 2003 ele se multiplica. Ao final de 2003, o desemprego atingiu patamares recordes, pois entre 2001 e 2003 o país cresceu apenas 1,7% ao ano. Em todos esses períodos, o aumento da população em idade laboral foi maior do que o aumento da produção. (...) não é de se estranhar que, ao longo da década de noventa, as despesas com benefícios tenham superado as receitas de contribuições previdenciárias. Esse resultado não derivava do excesso de direitos, como a reforma de 1998 pretendeu demonstrar, mas de uma realidade criada na economia e no mercado de trabalho, fruto dos mesmos interesses que priorizavam a financeirização da riqueza e o rentismo do capital como instrumentos da sua multiplicação patrimonial.
“... de 2004 a 2008, com melhorias na economia e no mercado de trabalho, maior número de contratações e queda da informalidade, as receitas das contribuições previdenciárias cresceram em percentuais acima da evolução das despesas. O ano de 2008, mesmo com a crise diminuindo o ritmo de contratações a partir de outubro, foi o quinto ano sucessivo de grande geração de empregos. As receitas cresceram R$ 22,9 bilhões, superando até numericamente o aumento das despesas, R$ 14,2 bilhões. E o saldo a ser coberto com as demais contribuições sociais diminuiu para 1,2% do PIB – e, se consideradas as renúncias previdenciárias, esse saldo cai para 0,48% do PIB” (ANFIP, op. cit., págs. 62, 63 e 64).

Ressaltemos que essas considerações são especificamente sobre a Previdência Social – e não sobre o conjunto do sistema de Seguridade Social, que inclui também a Saúde e a Assistência Social.

(1) Para o leitor que se interessar sobre os problemas dessas “projeções”, recomendamos, no mesmo volume, além do texto citado, os seguintes (a lista parece longa, mas são textos muito claros e sucintos): P. M. Jannuzzi e A. S. Borges, “Projeções demográficas e a Previdência Social no Brasil: mitos, resultados e tendências”, pág. 175; A. Khair, “A Previdência e a Evolução Demográfica”, pág. 193; M. Bruno, “Transição Demográfica e Regime de Acumulação Financeirizado no Brasil: 'Bônus' ou 'Ônus' para a Previdência Social?”, pág. 204; E. I. G. de Andrade, “Componentes Econômico, Demográfico e Institucional da Previdência Social”, pág. 196; C. Salm, “Demografia, Previdência e Inclusão Social: Comentários”, pág. 221.
C.L.

Nenhum comentário: