terça-feira, 10 de junho de 2014

O tempo em que Serra era chefe da privatização de Fernando Henrique...


Em abril de 1999, em meio ao obscurantismo do governo Fernando Henrique, surgiu um livro, com apenas 71 páginas, destinado a ficar como uma das grandes obras do nosso país: “O Brasil privatizado – um balanço do desmonte do Estado”.  Seu autor, Aloysio Biondi, jornalista econômico - quando essa expressão não estava associada ao puxa-saquismo mais reacionário e mais estúpido - foi um homem notável, um homem corajoso, que não temia o isolamento dentro da mídia (a rigor, estava se lixando para isso), considerando mais importante a honra do que a honraria, a verdade do que o punhado de dólares.  Assim, fez a dissecção do maior crime da História do Brasil: a privatização, implementada por aquele governo - e seu chefe do programa de privatização, José Serra.
  
Biondi era um brasileiro. Era, também, um amigo – um de nossos editores, Luiz Rocha, trabalhou com ele, guardando emocionadas e divertidas recordações do seu então chefe no velho DCI. Uma delas mostra bem o caráter de Aloysio, homem sério no trabalho e de permanente bom humor: “às vezes faltava dinheiro para pagar aos funcionários. Ele, então, usava o dinheiro que ganhava na ‘Folha’, onde era colunista, para dar um vale ao pessoal. E achava que era um bom emprego para esse dinheiro”.
  Aloysio Biondi faleceu há 10 anos, em julho de 2000. Seu livro, já em 11ª reimpressão, com centenas de milhares de exemplares vendidos, pode ser encontrado na biblioteca digital da Fundação Perseu Abramo (
www.fpabramo.org.br).
 
C.L.
ALOYSIO BIONDI

Antes de vender as empresas telefônicas, o governo Fernando Henrique investiu 21 bilhões de reais no setor, em dois anos e meio. Vendeu tudo por uma “entrada” de 8,8 bilhões de reais ou menos – porque financiou metade da “entrada”.
  
Na venda do Banco do Estado do Rio de Janeiro (Banerj), o “comprador” pagou apenas 330 milhões de reais e o governo [Marcelo Alencar – PSDB] do Rio tomou, antes, um empréstimo dez vezes maior, de 3,3 bilhões de reais, para pagar direitos dos trabalhadores.
  
Na privatização da rodovia dos Bandeirantes, em São Paulo, a empreiteira que ganhou o leilão está recebendo 220 milhões de reais de pedágio por ano desde que assinou o contrato – e até abril de 1999 não começara a construção da nova pista.
  
A Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) foi comprada por 1,05 bilhão de reais, dos quais 1,01 bilhão em “moedas podres” – vendidas aos “compradores” pelo próprio BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), financiadas em 12 anos.
  

Assim é a privatização brasileira: o governo financia a compra no leilão, vende “moedas podres” a longo prazo e ainda financia os investimentos que os “compradores” precisam fazer – até a Light recebeu um empréstimo de 730 milhões de reais no ano passado. E, para aumentar os lucros dos futuros “compradores”, o governo “engole” dívidas bilionárias, demite funcionários, investe maciçamente e até aumenta tarifas e preços antes da privatização.
  
Houve uma intensa campanha contra as estatais nos meios de comunicação, verdadeira “lavagem cerebral” da população para facilitar as privatizações. Entre os principais argumentos, apareceu sempre a promessa de que elas trariam preços mais baixos para o consumidor, “graças à maior eficiência das empresas privadas”. A promessa era pura enganação. No caso dos serviços telefônicos e de energia elétrica, o projeto de governo sempre foi fazer exatamente o contrário, por baixo do pano, ou na surdina.
  
Como assim? Antes de mais nada, é preciso relembrar um detalhe importante: antes das privatizações, o governo já havia começado a aumentar as tarifas alucinadamente, para assim garantir imensos lucros no futuro aos “compradores” – e sem que eles tivessem de enfrentar o risco de protestos e indignação do consumidor. Para as telefônicas, reajustes de até 500% a partir de novembro de 1995 e, para as fornecedoras de energia elétrica, aumentos de 150% – ou ainda maiores para as famílias de trabalhadores que ganham menos, vítimas de mudanças na política de cobrança de tarifas menores (por quilowatt gasto) nas contas de consumo mais baixo. Tudo isso aconteceu como “preparativo” para as privatizações, antes dos leilões.
  

Mas o importante, que sempre foi escondido da população, é que, em lugar de assinar contratos que obrigassem a Light e outros “compradores” a reduzir gradualmente as tarifas – como foi obrigatório em outros países –, o governo garantiu que eles teriam direito, no mínimo, a aumentar as tarifas todos os anos, de acordo com a inflação. Isto é, o governo fez exatamente o contrário do que jornais, revistas e TVs diziam ao povo brasileiro.  Além dessa garantia de reajustes anuais de acordo com a inflação, os “compradores” das empresas de energia podem também aumentar preços se houver algum “imprevisto” – como é o caso da maxidesvalorização do real ocorrida no começo de 1999...
  
O governo e os meios de comunicação sempre esconderam que as metas estabelecidas para os “compradores” das telefônicas somente passariam a valer a partir de... dezembro de 1999. Isto é, na prática, os “compradores” poderiam deixar de atender os consumidores, ou não melhorar substancialmente os serviços, durante todo o segundo semestre de 1998 e o ano inteiro de 1999.
  
Foi exatamente essa alegação, a de que as metas valeriam somente a partir de 2000, que a Anatel usou durante quatro meses, de dezembro de 1998 a março de 1999, para não tomar nenhuma providência contra os desmandos da Telefônica em São Paulo.


“PIORA AUTORIZADA”

 
E para a Light e outras empresas fornecedoras de energia elétrica? Aqui, a “bondade” do governo bateu recordes. No caso da Light, o contrato previu – isto mesmo, previu – e autorizou a piora dos serviços, pois permitiu um número maior de blecautes ou “apagões”, e também de interrupções mais prolongadas no fornecimento de energia. Incrível? Pois essa “piora autorizada” foi denunciada antes mesmo da assinatura do contrato com a Light, por uma organização não-governamental do Rio, o Grupo de Acompanhamento Institucional do Sistema de Energia, do qual o físico Luís Pinguelli Rosa é um dos integrantes.
  


Como se não bastasse, a multa fixada para as empresas de energia que desrespeitarem até os limites “simpáticos” combinados com o governo é absolutamente ridícula. Quanto?  Apenas 0,1% do faturamento anual. Ou seja, se a Light ou a Eletropaulo ou a Companhia Paulista de Força e Luz (CPFL) faturarem 1,2 bilhão de reais em um ano, a multa será de apenas 1,2 milhão de reais... Deu para entender a jogada? Se as empresas privatizadas deixarem de investir 100 milhões, 200 milhões ou 400 milhões de reais para atender os moradores, as indústrias, as empresas de determinada região ou cidade, pagarão apenas 1,2 milhão de reais de multa... Isso não é multa. É prêmio do governo aos “compradores”.

 
TELES
 

  O caso mais escandaloso de “investimentos para enriquecer os compradores” foi o do sistema Telebrás. Em 1996, o governo duplicou os investimentos nas teles, alcançando 7,5 bilhões de reais, chegou aos 8,5 bilhões de reais em 1997 e investiu mais 5 bilhões de reais no primeiro semestre de 1998, totalizando, portanto, 21 bilhões de reais de investimentos em dois anos e meio. Uma “gastança” ainda mais estranha se lembrarmos que naquela época o Brasil já caminhava para a crise, o que forçou o governo a lançar seu primeiro programa de “ajuste fiscal” em fins de 1997 – levando a violentas reduções nos gastos, inclusive nas áreas da saúde, educação, verbas para o Nordeste etc. Com essa “dinheirama”, o governo ampliou as redes, instalações, estações, cabos, toda a infra-estrutura do sistema telefônico, deixando tudo pronto para as telefônicas chegarem, puxarem as linhas até a casa do freguês e começarem a faturar para seus próprios cofres.  Lucros obtidos com dinheiro nosso. Mas, neste Brasil em que a mentira campeia solta, as empresas “compradoras” dizem, e os meios de comunicação repetem, que os problemas surgidos depois da privatização se devem à “falta de investimentos” no período em que elas eram do governo. A mesma mentira repetida, também, pelos “compradores” das empresas paulistas de energia elétrica já privatizadas...
  
O governo Fernando Henrique Cardoso implantou as privatizações a preços baixos, financiou os “compradores”, sempre alegando não haver outros caminhos possíveis. A experiência de outros países, que a equipe de governo conhecia muito bem, mostra que essa argumentação é falsa. Como foi possível ao governo agir com tal autoritarismo, transferindo o patrimônio público, acumulado ao longo de décadas, a poucos grupos empresariais que nem sequer tinham dinheiro para pagar ao Tesouro?
  
Houve a campanha de desmoralização das estatais e a ladainha do “esgotamento dos recursos do Estado”. Mais ainda: a sociedade brasileira perdeu completamente a noção – se é que a tinha – de que as estatais não são empresas de propriedade do “governo”, que pode dispor delas a seu bel-prazer. Esqueceu-se de que o Estado é mero “gerente” dos bens, do patrimônio da sociedade, isto é, que as estatais sempre pertenceram a cada cidadão, portanto a todos os cidadãos, e não ao governo federal ou estadual. Essa falta de consciência coletiva, reforçada pelos meios de comunicação, repita-se, explica a indiferença com que a opinião pública viu o governo doar por 10 o que valia 100. Um “negócio da China” que, em sua vida particular, nenhum trabalhador, empresário, nenhuma família de classe média ou o povão aceitariam. Qual seria a reação de qualquer brasileiro, por exemplo, se um vizinho rico quisesse comprar sua casa, que valesse 50 mil ou 100 mil, por 5 mil ou 10 mil? Reagiria violentamente. No entanto, centenas e centenas de bilhões de reais de patrimônio público, isto é, de propriedade dos milhões de brasileiros, foram “vendidos” dessa forma, sem grandes protestos a não ser nas áreas sindicais ou oposicionistas – que, por isso mesmo, tiveram seu espaço nos meios de comunicação devidamente cortado, tornado quase inexistente, nos últimos anos.
  
A “doação” do patrimônio público empreendida pelo governo Fernando Henrique Cardoso tem um agravante. O governo já tem dívidas com os trabalhadores, cerca de 50 bilhões a 60 bilhões de reais, representadas pelo dinheiro do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e do PIS/Pasep (Plano de Integração Social/Programa de Formação de Patrimônio do Servidor Público), que o governo usou para financiar projetos diversos. Se todos os trabalhadores brasileiros fossem sacar seu PIS ou FGTS ao mesmo tempo, descobririam que não poderiam receber, porque está “faltando” aquele dinheiro, utilizado pelo governo. Isto é: quando se diz que o governo deve a cada João, a cada Maria, a cada Antônio, a cada Joana brasileiros, não é mera força de expressão. É a pura verdade. O governo poderia ter finalmente pago essa dívida aos brasileiros, entregando-lhes ações das empresas estatais. Essa hipótese existia no governo Itamar Franco, quando o BNDES planejava privatizar as estatais usando “moedas sociais” (ou seja, FGTS, PIS/Pasep). Com a posse de Fernando Henrique Cardoso e sua equipe, a proposta foi abandonada, para alegria de grupos empresariais.
 
 O trabalhador brasileiro foi duplamente lesado. Continuou vítima do “calote” do governo, no FGTS e no PIS/Pasep. E ficou sem as estatais, das quais já era dono.
 

O ROMBO
 

  Tudo somado, contas bem feitas mostrariam que as privatizações não reduziram a dívida e o “rombo” do governo. Ao contrário, elas contribuíram para aumentá-los. O governo ficou com dívidas – e sem as fontes de lucros para pagá-las.
Ironicamente, o governo reconheceu isso com todas as letras. Na carta de intenções que o ministro da Fazenda, Pedro Malan, entregou ao FMI (Fundo Monetário Internacional), inconscientemente, o governo confessa que o equilíbrio das contas do Tesouro ficou mais difícil porque... o governo deixou de contar com os lucros que as estatais ofereciam como contribuição para cobrir o rombo até serem vendidas. Pasme-se, mas é verdade.
  

As privatizações não contribuíram, portanto, para reduzir o “rombo” e as dívidas do Tesouro – totalmente atolado, em 1999, com o pagamento de juros na casa astronômica dos 130 bilhões de reais. Uma quantia impagável, já que é praticamente o valor de todo o orçamento da União em 1999 – excluindo-se a Previdência –, no montante de 160 bilhões de reais. Pior ainda: a política de privatizações tampouco desempenhou o outro papel que se anunciava para ela, a saber, o de criar “novos motores na economia”, com a contratação maciça de encomendas nas indústrias do país, graças aos investimentos gigantescos previstos para as áreas de telecomunicações, energia e, em menor escala, ferrovias – além da área petrolífera. Ao contrário: com a conivência e até incentivos do governo, esses setores vêm realizando importações explosivas, “torrando” dólares e ampliando o “rombo” da balança comercial (exportações menos importações). Além disso, os “donos” multinacionais das empresas privatizadas passaram a realizar remessas maciças para o exterior, para seus países, seja como lucros, dividendos, juros ou até como pagamento de “assistência técnica” ou “compra de tecnologia” de suas matrizes. Em lugar de ajudar a tapar o “rombo” externo, a privatização o agravou, e de forma permanente. Como? Decisões do governo que dessem preferência ao produtor local poderiam corrigir distorções e levar à redução nas importações. Mas as remessas às matrizes permanecerão. Para sempre.
  
Antes mesmo das privatizações, o governo elevou os investimentos na área de telecomunicações, de 3,5 bilhões para 7 bilhões de reais por ano, como já visto. Apesar dessas cifras, o faturamento dos fabricantes brasileiros recuou, empresas foram fechadas e o desemprego avançou... Razão da contradição? As grandes multinacionais, já existentes ou atraídas para o setor – e beneficiadas, mais uma vez, por financiamentos do BNDES –, passaram a importar maciçamente. Alguns equipamentos de telefonia chegaram a utilizar 97% de peças e componentes importados – e aparelhos celulares de algumas marcas chegam a utilizar de 85% a 100% de peças vindas do exterior; isto é, são apenas “montados” no país.
  
Em suas primeiras “concorrências” para a compra de equipamentos, em março de 1999, a Telefônica, compradora da Telesp de São Paulo, não convidou uma única empresa brasileira fabricante de peças e equipamentos para disputar as encomendas. O peso das importações do setor de telecomunicações no “rombo” da balança comercial pode ser avaliado por estes dados: de 1993 a 1998, as compras da área de telecomunicações no exterior aumentaram dez vezes, 1.000%, de 280 milhões de dólares para 2,8 bilhões de dólares, deixando um déficit setorial de 2,5 bilhões de dólares.
  
Esses números, ainda por cima, não retratam o verdadeiro tamanho do “rombo” em dólares provocado pelo setor. Por quê?  Há peças e componentes que são classificados como produtos “eletrônicos”, embora na verdade se destinem ao setor de telecomunicações. E, nessa área de eletrônicos, o déficit ganhou dimensões assombrosas, chegando aos 8 bilhões de dólares, com a importação de 11 bilhões de dólares e a exportação de 3 bilhões de dólares. Bom notar: o saldo negativo do setor é superior a todo o “rombo” da balança comercial brasileira, de 6,4 bilhões de dólares. Vale dizer: ele é capaz de devorar o valor das exportações e os saldos positivos de outros setores – sobretudo a agricultura... No frigir dos ovos, as privatizações contribuíram para a “torra” de dólares, o “rombo” nas contas externas e consequentes abalos nas cotações do real.
  
Qual o tamanho da sangria de dólares provocada pelas remessas às matrizes ou fornecedoras localizadas no exterior? O dado (para todos os setores) é assustador: elas passaram de algo entre 600 milhões e 700 milhões de dólares por ano para atingir a faixa dos 7,8 bilhões de dólares em 1998. Um salto de 1.000%, ou dez vezes maior. O mesmo fenômeno ocorreu com o pagamento de “assistência técnica” e “compra de tecnologia” (manobra usada também para remessa disfarçada de lucros às matrizes), que saltou de 170 milhões de dólares para 1,7 bilhão de dólares, de 1993 para 1998.
  
Essas sangrias podiam ser parcialmente compensadas se os “compradores” trouxessem capitais deles próprios, tanto para comprar as estatais, no momento do leilão, como depois, para realizar os investimentos previstos para a “privatizada”. Nem isso acontece, por incrível contradição da política do governo. Nos próprios leilões, em lugar de capitais próprios, os “compradores” tomam empréstimos lá fora, e esses empréstimos são incluídos na dívida externa do país, engrossando também os juros que o Brasil tem de pagar aos bancos internacionais. É o caso da privatizada Vale do Rio Doce, que tomou um empréstimo de 1 bilhão de dólares do National Bank para participar da compra da Light. Ou, o que é mais esdrúxulo ainda: é o caso da própria Light, já privatizada e com a Vale como uma de suas “donas”, que tomou um empréstimo de 1,2 bilhão de dólares para comprar a Eletropaulo, de São Paulo.
  
Deve-se lembrar, ainda, que o BNDES, contraditoriamente, passou a financiar parte da “entrada” já nos próprios leilões de compras, além de conceder empréstimos para os projetos executados pelos “compradores”.
  
As importações maciças realizadas pelos “compradores” tiveram um efeito mais devastador do que parecia à primeira vista. A compra de peças e componentes no exterior, em substituição à produção local, significou cortes na utilização também de matérias-primas, como plástico, borracha, metais, devastando setores inteiros, fechando fábricas, cortando empregos – isto é, puxando a economia do país para o fosso. Além disso, a própria concentração dos empréstimos do BNDES a esses “compradores” implicou, na prática, em que as demais áreas e centenas de milhares de empresas continuassem às voltas com a falta de crédito.
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