domingo, 23 de maio de 2010

A REVOLTA DA CHIBATA

A chibata na Marinha era uma triste herança inglesa, trazida ao Brasil pelo almirante Cochrane, tornada ilegal após a proclamação da República, e depois restaurada pela reação monárquico-escravagista que deflagrou a tentativa de golpe contra o presidente Floriano Peixoto.

Mas tinha sido outra vez banida pelo almirante Júlio César Noronha, ministro da Marinha do governo Rodrigues Alves. Infelizmente, com a mudança de planos feita pelo sucessor do almirante Noronha, o uso da chibata outra vez recrudescera.
No dia 22 de novembro de 1910, após o desumano castigo de 250 chibatadas imposto a um marinheiro do encouraçado Minas Gerais, Marcelino Rodrigues Meneses, estourou aquela que passaria à história como a Revolta da Chibata. Uma das mais poderosas esquadras do mundo na época ficou em poder dos revoltosos em alguns minutos. Imediatamente, o líder dos marinheiros, João Cândido, passou uma mensagem por rádio para o Palácio do Catete: “Não queremos a volta da chibata. Isso pedimos ao presidente da República, ao ministro da Marinha. Queremos resposta já e já”.

Havia apenas seis dias que o novo presidente da República, marechal Hermes da Fonseca, tomara posse. O novo governo enviou, então, a bordo dos navios, o deputado José Carlos Carvalho, comandante da Marinha, que subiu, fardado, para conversar com os revoltosos e foi recebido por eles com todas as honras militares.

Seu relato posterior ao Congresso é um documento notável, no qual transparece seu horror ao que havia presenciado e ao que tinha ouvido: “... perguntei quem se responsabilizava por aqueles atos. Responderam-me: ‘todos’. E um deles acrescentou: ‘estamos em um verdadeiro momento de desespero; sem comida, muito trabalho, e as nossas carnes rasgadas pelos castigos corporais que chegam à crueldade.

Não nos incomodamos com o aumento de nossos vencimentos, porque um marinheiro nacional nunca trocou por dinheiro o cumprimento de seu dever e os seus serviços à Pátria. (....) Nada queremos senão que nos aliviem dos castigos corporais, que são bárbaros, que nos deem meios para trabalhar compatíveis com nossas forças. V. Sª pode percorrer o navio, para ver que está tudo em ordem, e até o nosso escrúpulo, sr. comandante, chegou a este ponto: ali estão guardando o cofre de bordo quatro praças, com as armas embaladas; para nós aquilo é sagrado. Só queremos que o sr. presidente da República nos dê liberdade, abolindo os castigos bárbaros que sofremos, dando-nos alimentação regular e folga no serviço. V. Sª vai ver se nós temos ou não razão’. Mandaram vir à minha presença uma praça que tinha sido castigado na véspera. As costas desse marinheiro assemelhavam-se a uma tainha lanhada para ser salgada”.

O comandante Carvalho referiu-se, também, à perícia dos marinheiros no manejo dos navios. Seu líder, João Cândido, era – e foi, até o fim de sua longa e difícil vida – um homem notável. O nome pelo qual ficou conhecido pelo povo, “almirante negro”, fez-lhe justiça. Sua inteligência, capacidade de sacrifício e ausência de ressentimentos foram tão responsáveis pela sua fama quanto sua capacidade náutica. Aliás, era um homem que amava a Marinha - 58 anos depois da Revolta da Chibata, ele, com 83 anos, em depoimento ao Museu da Imagem e do Som, diria: “entrei na Marinha com quatorze anos e entrei bisonho. Toda a luz que me iluminou e me ilumina, graças a Deus, que é pouca, foi adquirida, posso dizer, na Marinha”.
Filho de um escravo que conquistou sua liberdade lutando na Guerra do Paraguai, João Cândido passou a infância como “negrinho do pastoreio”, no Sul; participou do conflito com a Bolívia, no Acre; fez parte da exploração da Amazônia pelo navio Tocantins; depois de estar em missão no Paraguai, seguiu para a Europa, acompanhando, nos estaleiros de New Castle, Inglaterra, a construção do “Minas Gerais” e fazendo parte da tripulação na viagem inaugural do encouraçado, que trouxe dos EUA os restos mortais do abolicionista Joaquim Nabuco.
O documentos da revolta são dos mais candentes de nossa História.
Transcrevemos aqui um deles:
“Ao povo e ao chefe da Nação.
“Os marinheiros do Minas Gerais, do São Paulo, Bahia, Deodoro, e mais navios de guerra vistos no porto com a bandeira encarnada, não têm outro intuito que não seja o de ver abolido das nossas corporações armadas o uso infamante da chibata, que avilta o cidadão e abate o caráter. A resolução de içarem no mastro dos navios as bandeiras encarnadas e de se revoltarem contra o procedimento de alguns comandantes e oficiais só foi levada a efeito depois de terem reclamado, por vezes insistentemente, contra esses maus tratos, contra o excesso de trabalho a bordo e pela mais absoluta falta de consideração com que foram tratados.
“Do chefe da Nação, o ilustre marechal Hermes da Fonseca, cujo governo os marinheiros desejam coroado pela paz e pelo mais inexcedível brilho, só desejam os reclamantes a anistia geral, a abolição completa dos castigos corporais para engrandecimento moral das nossas classes armadas.
“Os marinheiros lamentam que este acontecimento se houvesse dado no começo da Presidência de S. Ex., o sr. marechal Hermes da Fonseca, a quem a guarnição do São Paulo é especialmente simpática.
“Ao povo brasileiro os marinheiros pedem que olhem a sua causa com a simpatia que merece, pois nunca foi seu intuito tentar contra as vidas da população laboriosa do Rio de Janeiro.
“Só em última emergência, quando atacados ou de todo perdidos, os marinheiros agirão em sua defesa. Esperam, entretanto, que o governo da República se resolva a agir com humanidade e justiça.
“Ass. Os marinheiros da Armada brasileira.”
O presidente Hermes da Fonseca, enfrentando a pressão reacionária, decidiu não atacar os revoltosos - como o próprio João Cândido depois declarou, o governo tinha condições militares para atacar. A decisão de não fazê-lo foi de Hermes.

No entanto, no Congresso, nem mesmo o senador Pinheiro Machado, o político governista mais influente – em quem João Cândido confiava, pois o conhecera no Sul, como soldado das tropas de Pinheiro durante a rebelião federalista – enfrentou essa pressão.
Coube, então, à principal figura da oposição, o senador Ruy Barbosa, recentemente derrotado pelo marechal Hermes nas eleições, fazê-lo. E Ruy começou o seu discurso, propondo a anistia para os marinheiros:
“Os fortes são os que cedem e transigem numa situação em que a condescendência é o único meio imposto para a salvação pública; o fraco é o que já na última extremidade ainda supõe ter nas mãos todos os recursos e é forçado a abandoná-los em última análise quando as transações revestem as formas das humilhações indecentes e desgraçadas.
“... é necessário não esquecermos o valor da gente que tripula essas máquinas de guerra. Digamo-lo, com alguma vaidade, com algum desvanecimento, por honra dos nossos compatriotas. O que constitui as forças das máquinas de guerra não é a sua mole, não é a sua grandeza, não são os aparelhos de destruição – é a alma do homem que as ocupa, que as maneja, e as arremessa contra o inimigo. As almas dessas máquinas que povoam os nossos grandes dreadnoguths [navios de guerra], hoje, em nossa baía, (...) as almas desses homens têm revelado virtudes que só honram a nossa gente e a nossa raça.
“... vi como esses homens lhe demonstravam [ao comandante e deputado José Carlos Carvalho] com orgulho os seus navios, dizendo: ‘Senhor, isto é uma revolta honesta’. Eles tinham lançado ao mar toda a aguardente existente a bordo, para não se embriagarem; tinham feito guardar, com sentinelas, as caixas onde se encontravam depositados os valores; tinham mandado guardar com sentinelas os camarotes dos oficiais para que não fossem violados; tinham guardado, na organização do movimento, um sigilo prodigioso entre os costumes brasileiros; tinham sido fiéis à sua ideia; tinham sido leais uns aos outros, desinteressados na luta (....). Gente dessa ordem não se despreza. Lamentam-se os desvios, mas reconhece-se o valor humano que ela representa.
“As reclamações capitais existentes na base desse movimento correspondem a necessidades irrecusáveis. Estes castigos foram abolidos por ato legislativo do Governo Provisório [da República, do qual Ruy era o ministro da Fazenda e redator legislativo]. Abusos com os quais, na gloriosa época do abolicionismo, levantamos a indignação dos nossos compatriotas, quando nos batíamos pela liberdade, abusos que fazem desconhecer no soldado e no marinheiro as qualidades principais daqueles que têm de expor a vida para defender a Nação.
E Ruy encerrou com uma comparação moral:
“A escravidão começa por desmoralizar e aviltar o senhor antes de desmoralizar o escravo”.

O líder do governo, Pinheiro Machado, falou em seguida, apoiando a anistia - aprovada rapidamente pelo Congresso - e o presidente decretou a abolição da chibata.
E então, após o fim da Revolta, teve início a vergonha, sob os protestos exaltados e a denúncia ardente de Ruy. Usando um pretexto - um motim dos fuzileiros navais com o qual os homens da Revolta da Chibata nada tinham a ver - os líderes são presos e encerrados na cela nº 5 da Ilha das Cobras, masmorra subterrânea escavada na rocha, onde se atira cal, para que eles o respirem. Somente dois, de 18 prisioneiros, saem vivos da cela – um deles, João Cândido, absolvido de todas as acusações em 1912.



CARLOS LOPES

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