quinta-feira, 15 de agosto de 2013

O leilão do pré-sal e a descida aos infernos do renegado Lima


Segundo a filosofia haroldista, entregar a propriedade pública depois da década de 90 não é privatização. Vai ver que roubar o Erário ou agasalhar uma propina já não é mais roubo nem corrupção - depois da década de 90... Segundo o Haroldo, só se podem privatizar empresas, mas não riquezas naturais. Nisso, está um pouco à direita do ex-presidente Artur Bernardes, que em priscas eras iniciou uma campanha contra a privatização e desnacionalização das riquezas naturais da Amazônia
CARLOS LOPES
O atual consultor Haroldo Lima(foto), ex-diretor da Agência Nacional do Petróleo (ANP), completou mais uma fase da sua metamorfose – de nacionalista histórico a entreguista histérico. Em recente artigo, uma apologia do leilão do pré-sal, perpetrou frenética defesa da lei das concessões do petróleo de Fernando Henrique. Diz o Haroldo que a vantagem dessa lei, para o país, é que "a concessão não gera direito de propriedade sobre o campo produtor".
Como consultor – a julgar pela situação pré-falimentar de sua mais conhecida cliente, a HRT – o Haroldo não deve ser um cadillac da profissão. Portanto, vamos admitir que ele acredite no que escreveu. Seria uma prova de que o entreguismo deixa as pessoas muito emburrecidas. Talvez até uma demonstração sintomatológica de que, em alguns casos, provoca alucinações.
O que interessa às petroleiras é o direito de propriedadesobre o petróleo, não sobre a água salgada ou os peixes de um "campo produtor". Mas o petróleo, obviamente, está no campo- ou seja, faz parte do "campo produtor". Exatamente porque o petróleo faz parte dele, o Haroldo pode chamá-lo de "campo produtor" - pois supõe-se que ele esteja se referindo a um campo "produtor" de petróleo.
Esse é, precisamente, o problema da lei das concessões de Fernando Henrique. O que é concedido por essa lei é aquilo que as petroleiras multinacionais querem: o direito de propriedade sobre o petróleo. Por essa lei, o petróleo só pertence ao país quando (ou enquanto) está debaixo da terra, ou seja, quando é inútil para o país. Qualquer gota de petróleo extraído pertence à concessionária.
É óbvio que ter o direito de propriedade sobre o petróleo extraído é a mesma coisa que ter o direito de propriedade sobre a parte essencial de um "campo produtor" - exatamente aquela parte que define esse campo como "produtor".
Portanto, não é verdade que a concessão "não gera direito de propriedade sobre o campo produtor" - ela gera direito de propriedade sobre o que interessa no "campo produtor", sobre o que faz um campo ser "produtor", sobre a essência de um campo produtor de petróleo - ou seja, sobre o próprio petróleo.
A FEBRE
Desculpe-nos o leitor por gastar tanto latim com algo que qualquer débil mental é capaz de entender. Realmente, não é por debilidade mental que o Haroldo se faz de sonso - e, sim, porque nada resta ao entreguista, senão esse ridículo papel. Como é possível falar a verdade para as pessoas, quando o objetivo é coonestar um assalto a essas mesmas pessoas?
O artigo do Haroldo tem outros sintomas interessantes. Por exemplo, diz que foi ele, e não Lula, quem protegeu o pré-sal dos leilões da lei das concessões de Fernando Henrique. Literalmente: "Quando o pré-sal foi descoberto, o então presidente Lula dirigiu uma reunião do Conselho Nacional de Política Energética em que, por proposta do então diretor-geral da ANP, quarenta e um blocos localizados na região da descoberta foram retirados da lista dos que seriam licitados".
O sr. Lima esqueceu-se que, em 31 de março de 2009,depois que o presidente Lula havia suspenso os leilões, o então diretor-geral da ANP - que, por coincidência, também tinha o nome de Haroldo Lima - pronunciou no Rio de Janeiro uma conferência intitulada "Controvérsias da política atual do petróleo no Brasil", onde declarou:
"Suspender os leilões, nos marcos legais atuais, é truncar o desenvolvimento do Brasil".
O "marco legal atual", evidentemente, era a lei das concessões de Fernando Henrique, que dava às petroleiras o direito de propriedade sobre o petróleo.
Poder-se-ia achar que o Haroldo estava se referindo apenas às áreas fora do pré-sal. Mas o fato é que, para proteger o pré-sal, o presidente Lula foi obrigado a suspender os leilões em todas as áreas – pelo simples fato de que, sob a lei das concessões, a ANP já havia leiloado 27% do pré-sal.
O sr. Lima, naturalmente, pode escolher: ou Lula era seu seguidor, talvez um discípulo, como disse agora, ou o presidente Lula estava "truncando o desenvolvimento do Brasil", como disse em 31 de março de 2009. Mas qualquer dessas escolhas será uma falsidade, uma mentira.
Na época, o Haroldo foi tomado por uma febre revisionista e resolveu rever o que acontecera na quebra do monopólio estatal do petróleo por Fernando Henrique. Disse ele, na mesma conferência:
"O modelo ‘mercado aberto com presença estatal’ prevaleceu no Brasil por força da pressão nacional e popular".
A declaração provocou algumas gargalhadas, inclusive, certamente, nos escritórios de algumas multinacionais: elas sabem que não há "mercado aberto" algum no petróleo – e, aliás, detestam qualquer mercado, porque elas mesmas são gigantescos monopólios privados multinacionais.
As outras gargalhadas vieram do lado antípoda: afinal, qual foi o setor nacional ou popular que apoiou a quebra do monopólio estatal do petróleo?
Absolutamente nenhum - todos se lembravam bem de algo acontecido apenas 12 anos antes. Aliás, só por curiosidade: houve algum pronunciamento do então deputado federal Haroldo Lima, na época um bastião das causas nacionais e populares, a favor da quebra do monopólio estatal do petróleo?
O SOCIAL
Vejamos mais um sintoma do Haroldo: por que, num artigo que é uma apologia do leilão do pré-sal, ele faz uma defesa apaixonada da lei das concessões de Fernando Henrique, se, no pré-sal, ela não vigora, substituída que foi pela lei da partilha do presidente Lula? Tal como na digressão sobre essa mesma lei das concessões na minuta de edital que a ANP fez para o leilão do pré-sal, é evidente que os entreguistas não se conformam com a iniciativa de Lula – querem que a lei das concessões, um regime em extinção nos outros países desde 1973, vigore também no pré-sal. Por isso, como observou o ex-presidente da Petrobrás, Sérgio Gabrielli, tentam transformar o leilão do pré-sal sob a lei da partilha numa espécie de travesti dos leilões sob a lei das concessões (v. entrevista de Gabrielli a Paulo Henrique Amorim, HP, 26/07/2013).
Porém, em relação ao Haroldo, isso não é uma novidade: no dia 17 de dezembro de 2007, algumas semanas depois que o presidente Lula anunciou a descoberta do pré-sal e retirou 41 blocos localizados nessa área da Nona Rodada de licitações do petróleo, a ANP, que tinha como diretor-geral o sr. Haroldo Lima, emitiu a Nota Técnica nº 21/2007, em que conclui:
"... o modelo atualmente vigente, baseado em Concessões, apresentou até agora bons resultados (...) Observando-se, portanto, o considerável sucesso de sua implementação, desde a abertura do upstream brasileiro, entende-se que não é recomendável uma alteração significativa do mesmo. Eventuais benefícios advindos da adoção de Contratos de Partilha ou de outros modelos a ele assemelhados não superaria os riscos regulatórios associados a esta transição" (cf. ANP, Nota Técnica n.º 21/2007, "Modelos de Contratos para Exploração e Produção de Petróleo e Gás Natural: uma análise crítica da experiência brasileira e de alguns países selecionados", p. 22, grifos nossos).
Ao invés de mudar o modelo, a ANP, sob a direção do sr. Haroldo Lima, recomendava um aumento da participação governamental. Permita-nos o leitor a transcrição do documento da ANP:
"Este aumento dar-se-ia mediante a inclusão de uma alíquota específica sobre a produção de campos de alto potencial, a ser estabelecida por ato do Poder Executivo. Entende-se que este procedimento é o mais indicado à maximização das rendas petrolíferas a serem apropriadas pelo governo e ao desenvolvimento da indústria brasileira de petróleo e gás natural, uma vez que não incorre em mudanças substanciais das regras, que afugentam os investidores, e, ao mesmo tempo, contribui para reforçar o compromisso do país com o bem-estar social" (cf. loc. cit.).
O "bem-estar social", naturalmente, é aquele dos tucanos, pois o que se está dizendo é que quanto menos o país receber pelo petróleo, maior o bem-estar social... Era isso o que significava manter o regime de concessões no pré-sal, ao invés de, como fez o presidente Lula, substituí-lo por outro em que a Nação ganhasse substancialmente mais.
Aliás, o plano apoiado pelo sr. Haroldo Lima era exatamente o plano das multinacionais, apenas colorido com uma cínica linguagem "social". Transcreveremos em seguida os trechos que o comprovam. Antes, apenas uma observação: a única hipótese desse não ser o plano das multinacionais é aquela do sr. Lima e demais membros da entourage da ANP mostrarem uma sofreguidão entreguista mais histérica do que a voracidade das multinacionais. Como isso já aconteceu antes no Brasil, não afastamos a hipótese. Mas, aqui está um trecho do mesmo documento da ANP, da época do diretor-geral Haroldo Lima:
"... fatores como o tamanho da população, o nível de renda per-capita e o grau de conflito social interno, por exemplo,poderão sugerir um caminho de preferências quanto à opção de se privilegiar ganhos de curto prazo e, assim, o rápido atendimento às necessidades sociais, maximizando os esforços de exploração e produção" (p. 21).
Por isso:
"... interessa ao Brasil incentivar o maior nível de descobertas, atraindo, para tanto, o capital privado nacional e estrangeiro para as atividades de E&P [exploração e produção]".
E, por outro lado, usa-se o seguinte argumento para rejeitar outro caminho:
"De outra forma, seriam priorizados ganhos de longo prazo, adotando-se um ritmo mais lento de extração do recurso natural, o qual pode indicar a preservação da empresa estatal como única operadora, se não de todos, pelo menos dos principais campos".
Ou seja, para "atender as necessidades sociais" do Brasil, a solução seria entregar o pré-sal às multinacionais – para que essas acabassem logo com o petróleo, despachando-o para o exterior, pois é isso o que significa "privilegiar ganhos de curto prazo".
JUSTIÇA
Os "bons resultados" e "considerável sucesso" da lei das concessões resumia-se ao seguinte: "estudo elaborado pelo Congresso Nacional aponta que a parcela do Estado brasileiro na renda gerada pelo setor, descontada a incidência dos impostos sobre o consumo, como ICMS e Cide, é de apenas 23%, uma das menores do mundo" (cf. Dieese, Estudos & Pesquisas nº 48, "Desafios rumo à construção de uma nova legislação para a indústria de petróleo e gás natural no Brasil", outubro/2009, p. 16).
A situação somente não era pior porque a Petrobrás investira pesadamente nas várias rodadas de leilões, arrematando a maioria dos blocos. Porém, isto fez com que o sr. Haroldo Lima e os outros diretores da ANP tentassem proibir a Petrobrás de continuar essa política. Em resumo:
"A 8ª Rodada de Licitações da Agência Nacional do Petróleo (ANP) estava marcada para os dias 28 e 29 de novembro de 2006, com 284 blocos em oferta em sete bacias sedimentares, sendo 58 nas bacias de Santos e Tucano-Sul. Até a 7ª Rodada, a Petrobrás tinha adquirido 70% dos blocos leiloados pela ANP. Assim, para favorecer o cartel das Sete Irmãs, na 8ª Rodada a agência estabeleceu uma série de regras, que tinham como objetivo limitar a participação da Petrobrás. Ela não poderia ficar com mais de 11% dos blocos ofertados" (HP, 14/09/2011).
Ações impetradas na Justiça pelo Clube de Engenharia e pela deputada Drª Clair impediram a consumação desse crime, suspendendo o leilão no segundo dia – no primeiro, a ANP conseguiu "vender 38 blocos, incluindo o SM-857 adquirido pela italiana Eni, próximo ao bloco de Bem-te-vi (BM-S-8), no pré-sal, adquirido pela Petrobrás na 2ª Rodada. A norueguesa Statoil ficou com um bloco na franja do pré-sal. Naquela ocasião ainda não havia sido anunciada a descoberta do pré-sal" (idem).
Posteriormente, a presidente Dilma decidiu a não continuação desse leilão.
DESCIDA
Depois da descoberta do pré-sal, a ANP, que tinha como diretor-geral o sr. Haroldo Lima, foi inteiramente contrária à mudança da lei do petróleo para o pré-sal. É verdade que tiveram de se adaptar, diante da decisão do presidente Lula. Aí, então, apareceu seu apoio formal à lei da partilha – mas, como pode-se ver por seu recente artigo, Lima até hoje não se conformou. Se há alguma dúvida sobre isso, basta lembrar outra vez a sua afirmação de que a lei de Fernando Henrique foi consequência da "força da pressão nacional e popular". Isso é conversa de quem quer mudar a lei?
Entretanto, prossigamos: mais um sintoma é a necessidade do Haroldo de fazer outra defesa do leilão e privatização do pré-sal, porém, abandonando seu "argumento" anterior – a de que só os leilões e a entrega do petróleo às multinacionais poderiam ampliar as reservas de petróleo do Brasil. Agora, essa suposta crença aparece implicitamente, ao contrário de antes, quando estava na berlinda do pensamento haroldiano. A questão é que esse "argumento" é insustentável, depois que tornou-se público que a Petrobrás, sem nenhum leilão, já descobriu, somente no pré-sal, reservas que garantem nossa autossuficiência por mais 50 anos.
Porém, defender o indefensável, é sempre uma descida ao Inferno pela enlameada ribanceira da mentira.
Diz o Haroldo que "[nas manifestações das centrais sindicais]houve quem pretendesse introduzir, entre as reivindicações populares, duas insólitas: contra a privatização do pré-sal e pela suspensão do primeiro leilão previsto para essa área".
Ninguém "pretendeu introduzir" nada – e também é sintomática a escolha desses verbos. Movimento sindical não é casa da mãe Joana, em que aparece gente sorrateira, "pretendendo introduzir" coisas insólitas no lugar errado. Talvez por força do hábito, o Haroldo confundiu as centrais com a ANP – ou com algumas petroleiras que contratam insólitos consultores. Mas esse ambiente nada tem a ver com os sindicatos.
O fim dos leilões do petróleo e o repúdio à entrega do pré-salfazem parte da pauta das centrais sindicais, assim como o petróleo faz parte do "campo produtor". O fim dos leilões são um ponto de união, um ponto de coesão, um elemento constitutivo da unidade entre as centrais e entre os sindicatos de trabalhadores. Portanto, esse item - o "fim dos leilões do petróleo" - é parte da luta das centrais. Todas são contra a entrega do pré-sal às multinacionais. E por duas razões: porque as centrais sindicais fazem parte do Brasil e porque central sindical é coisa de trabalhador, é coisa de gente séria, que não gosta de roubo - e de ver o seu país ser roubado.
Mas, diz o Haroldo, "a privatização do pré-sal não está em cogitação" porque "privatização foi um processo concreto ocorrido na década de 1990, no qual empresas públicas foram adquiridas por empresas privadas".
Segundo a filosofia haroldista, entregar a propriedade pública depois da década de 90 não é privatização. Vai ver que roubar o Erário ou agasalhar uma propina já não é mais roubo nem corrupção - depois da década de 90... Segundo o Haroldo, só se podem privatizar empresas, mas não riquezas naturais. Nisso, está um pouco à direita do ex-presidente Artur Bernardes, que em priscas eras iniciou uma campanha contra a privatização e desnacionalização das riquezas naturais da Amazônia.
Porém, também não é nova no Haroldo essa esquisita concepção de privatização – ou, melhor, essa esdrúxula concepção de propriedade pública e nacional, da qual não fazem parte os bens da natureza. Ao modo daqueles norte-americanos ou europeus que querem considerar "patrimônio da humanidade" certas riquezas naturais, exatamente para tirá-las da humanidade, na medida em que saqueiam a parte da humanidade que habita o território – ou seja, a nação - onde ficam essas riquezas.
Na conferência de 2009, que citamos acima, disse o Haroldo: "A ANP foi criada para regulamentar o único setor da economia onde não houve privatização". Ou seja: entregar o petróleo, que é propriedade pública e nacional, aos monopólios privadosestrangeiros não é privatização...
No entanto, existe o fato: o petróleo do pré-sal é propriedade pública – porque as reservas pertencem à Nação. Por isso, a presidente Dilma usou, na campanha eleitoral, a exata expressão "privatização do pré-sal" para designar a entrega dessas reservas às multinacionais petroleiras. E estava com a razão. Como disse ela, denunciando seu adversário, "é um crime privatizar a Petrobrás ou o pré-sal". Não foi por afirmar o contrário que o povo votou nela – e não no Serra – para presidir o país. Na época, o Haroldo não chiou.
Mas, agora, segundo ele, entregar o maior campo de petróleo da História por 35 anos para que as multinacionais extraiam e levem o nosso petróleo, devolvendo, em troca, um buraco, não é privatização. Também não deve ser roubo ou assalto – a metamorfose do Haroldo faz com que alguns dos seus conceitos sofram (haja sofrimento!) um peculiar transformismo.

Assim é a vida: na hora das decisões importantes, existem sempre aqueles que se levantam, crescem e lutam - assim como existem aqueles que se abatem, se apequenam e aderem ao outro lado.

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