quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Mahatma Gandhi na África do Sul: as memórias da revolta dos zulus


Em 30 de janeiro de 1948, Mohandas Karamchand Gandhi, chamado “Mahatma” (“grande alma”) pelo poeta bengali Rabindranath Tagore, e “Bapu” (“pai”, na língua gujaratí, seu idioma natal) pelo povo indiano, foi assassinado em Nova Délhi, aos 78 anos.
Gandhi havia se oposto à divisão da Índia, então sob ocupação inglesa, em dois países - Índia e Paquistão. Até que se tornou inevitável essa divisão, Gandhi divergira da cúpula do Partido do Congresso, encabeçada por Jawaharlal Nehru, que aceitara a divisão, no acordo com os ingleses. Era uma situação insólita, pois, nos conflitos anteriores com Nehru, este sempre fora considerado o líder da ala esquerda do partido, enquanto que a Gandhi, correntemente, se atribuíra o papel antípoda. No entanto, na hora decisiva, os papéis estavam invertidos – ou, na realidade, nunca foram aqueles.
Para Gandhi, não havia porque separar muçulmanos de hindus e outras (inúmeras) religiões do chamado subcontinente indiano. E, realmente, os primeiros momentos dessa divisão foram trágicos, com a eclosão de sangrentos conflitos a partir da fronteira entre os dois países, traçada à régua por um funcionário inglês que pela primeira vez pisava na Índia.
Gandhi já era, nessa altura – e há muito -, se assim é lícito nos expressar, uma lenda viva. Sua defesa dos direitos dos muçulmanos fez com que um grupo de fascistas hindus levasse a cabo o seu assassinato.
Ele tinha sido a principal figura da luta pela independência da Índia. O interessante é que nada em sua juventude, e mesmo em sua maturidade, prenunciava o líder que se tornou. Como ele nos conta em sua autobiografia, publicada em 1929 (“Uma autobiografia ou a história de minhas experiências com a verdade”), mesmo depois de formado em Direito e de ter participado da luta dos imigrantes indianos contra a discriminação racial na África do Sul, ele era um fiel súdito da coroa inglesa, acreditando mesmo que o domínio britânico era a melhor coisa que podia acontecer a um povo.
Mas, alguma coisa na vida de Gandhi fez com que mudasse de opinião. Seu amor à verdade fez com que não conseguisse – nem ele queria – eludir  as horríveis injustiças que via (e que sofria) a cada dia.
Como homenagem a este grande homem, assassinado há 64 anos, publicamos hoje, de forma condensada, o seu relato de um desses momentos decisivos: a sua vivência da revolta zulu de 1906, na África do Sul. O texto foi extraído e traduzido da versão inglesa de sua autobiografia.
C.L.
Mohandas K.Gandhi
 Não creio ter conhecido alguém que fosse mais leal do que eu à Constituição britânica. Agora posso ver que o meu amor à verdade era a raiz dessa lealdade. Nunca foi-me possível simular lealdade nem qualquer outra virtude que não sentisse realmente. O hino nacional [britânico] era cantado em todas as reuniões de que participei, em Natal, e eu considerava que era meu dever cantá-lo com todos. Não é que eu ignorasse os defeitos do domínio britânico, mas pensava que, globalmente, ele era aceitável. Naquela época, eu acreditava que o domínio britânico era benéfico para os povos que governava.
O preconceito racial que eu vi na África do Sul era, pensei, contrário às tradições britânicas, e eu acreditava que era apenas temporário e local. Por isso, me uni aos ingleses na lealdade ao trono. Com perseverança e cuidado, aprendi a letra e a melodia do "Hino Nacional" e juntava-me aos demais para cantá-lo. Sempre que havia uma oportunidade para expressar essa lealdade sem espalhafato ou alarde, eu prontamente tomava parte nela.
Nunca na minha vida explorei essa lealdade, nem procurei ganhar vantagens egoístas por meio dela. Para mim, tinha a natureza de uma obrigação, que eu cumpria sem esperar recompensa.
Os preparativos para a celebração do jubileu de diamante da rainha Vitória, ou seja, os 75 anos do seu reinado, estavam em curso quando cheguei à Índia [voltando da África do Sul]. Fui convidado para integrar a comissão designada para esse fim em Rajkot. Aceitei o convite, mas tive a suspeita de que as comemorações seriam, sobretudo, um exibicionismo. Incomodou-me descobrir muita vigarice. Comecei a me perguntar se eu deveria continuar na comissão ou não, mas decidi ficar, limitando-me ao que me designassem.
Uma das propostas era plantar árvores. Vi que muitos fizeram isso apenas para se mostrar e agradar os funcionários ingleses. Tentei defender que o plantio de árvores fosse apenas uma sugestão, e não uma obrigação para todos. Devia ser alguma coisa séria, ou era melhor não se fazer. Tenho a impressão de que eles riram das minhas ideias. Lembro que plantei a árvore que me cabia com todo entusiasmo, e que a cuidei e reguei com todo carinho.
Eu também ensinei o Hino Nacional para as crianças da minha família. Lembro-me de tê-lo ensinado também aos alunos do colégio local, mas não recordo se foi por ocasião do jubileu ou da coroação do rei Edward VII como imperador da Índia.
Posteriormente, a letra do hino começou a chocar-me. À medida que minha concepção de ahimsa [não-violência] amadurecia dentro de mim, tornei-me mais cuidadoso com meus pensamentos e palavras. Especialmente os versos do hino: "Dispersai seus inimigos/ e fá-los cair;/ Confunda seus políticos,/ frustrai seus truques fraudulentos”, feriram o meu sentimento de ahimsa.
Compartilhei meus sentimentos com o Dr. Booth, que concordou em que um cultor do ahimsa não podia cantar esses versos. Como poderíamos dar como certo que os chamados 'inimigos' fossem 'velhacos'? E porque eles eram inimigos, eram obrigados a estar errados? De Deus só podemos pedir justiça. O Dr. Booth subscreveu inteiramente os meus sentimentos, e compôs um novo hino para a sua congregação.
REBELIÃO
Justo quando eu acreditara que poderia respirar em paz, um fato inesperado aconteceu. Os jornais trouxeram a notícia de que estalara a “rebelião” zulu em Natal.
Eu não alimentava nenhum rancor contra os zulus; eles jamais tinham incomodado os indianos. Tinha muitas dúvidas sobre essa “rebelião”. Mas acreditava, nessa época, que o Império Britânico existia para o benefício do mundo. Um lógico sentido de lealdade me impedia de desejar o menor dano ao império. A justiça ou o motivo da “rebelião”, portanto, não podiam influenciar a minha atitude.
Natal contava com uma força de defesa constituída por voluntários e começou o recrutamento de mais gente. Soube que tal corpo já fora mobilizado para sufocar a "rebelião".
Eu me considerava um cidadão de Natal, intimamente ligado ao lugar. Portanto, escrevi ao governador, expressando-lhe que estava preparado, se fosse necessário, para formar um Destacamento de Ambulâncias composto por indianos. Respondeu-me imediatamente, aceitando o oferecimento.
Não esperava resposta tão rápida. Afortunadamente, havia tomado todas as medidas necessárias antes de escrever a carta.
Dirigi-me a Durban e fiz um chamado aos homens. Não era necessário um grande contingente. Formamos um grupo de 24, dos quais, além de mim, quatro eram gujaratís. Os outros eram operários liberados que haviam residido na Índia meridional, exceto um, que era um pathan livre.
Com o objetivo de dar-me uma colocação específica e facilitar a tarefa, como também para obedecer aos regulamentos vigentes, o médico-chefe me nomeou, provisoriamente, sargento-mor, e, a três homens por mim selecionados, sargento a dois deles e cabo ao outro. Também recebemos do governo nossos uniformes. O destacamento esteve em serviço ativo durante umas seis semanas.
Ao chegar no cenário da “rebelião”, comprovei que nada justificava este título. Não havia resistência em parte alguma. A razão pela qual os distúrbios foram magnificados com esse nome, residia em que um chefe zulu comunicara que não pagaria uma nova taxa imposta a seu povo, e havia ferido com uma flecha a um sargento que tentou efetivar a nova medida.
Em todo momento, meu coração estava com os zulus, e senti muita alegria ao chegar no acampamento e saber que nosso trabalho consistiria, especialmente, em atender aos zulus feridos. O médico-chefe nos deu as boas vindas. Disse que os brancos não queriam atender aos zulus, que suas feridas  estavam se infectando, e que estava à beira de enlouquecer. Considerava a  nossa chegada uma bênção do Céu para essa gente inocente, e nos equipou com ataduras, desinfetantes, etc., levando-nos até o improvisado hospital.
Os zulus ficaram encantados de nos ver. Os soldados brancos trataram de interpor-se entre nós e eles, para nos dissuadir de atendê-los. E como não quisemos escutá-los, ficaram furiosos, e cometeram terríveis abusos contra os zulus.
Gradualmente, comecei a conversar com esses soldados, e deixaram de interferir em nosso trabalho. Entre os chefes, estavam o coronel Sparks e o coronel Wylie, que haviam lutado duramente contra mim em 1896.
[N.HP: A menção de Gandhi refere-se às manifestações de 1896 contra a chegada de indianos - inclusive o próprio Gandhi – à África do Sul, das quais Sparks e Wylie estiveram entre os promotores.]
Mostraram-se surpreendidos por minha atitude, e me chamaram especialmente para agradecer-me pelo que estava fazendo. Apresentaram-me, além disso, ao general Mackenzie. Não acredite o leitor que se tratasse de soldados profissionais. O coronel Wylie era um conhecido advogado de Durban. O coronel Sparks era dono de um açougue na mesma cidade, e o general Mackenzie era um importante granjeiro. Todos esses cavalheiros eram voluntários, e como tais haviam recebido instrução militar.
Os feridos dos quais ficamos encarregados não haviam sido feridos no campo de batalha. Uma parte deles foi detida como suspeitos. O general mandou açoitá-los, e o açoite havia rasgado as suas costas de forma bastante grave. Essas chagas, que não tiveram atendimento médico, estavam em avançado estado de infecção.
Os outros zulus eram habitantes da área, e ainda que contassem com distintivos que os diferenciavam do “inimigo”, os soldados haviam disparado contra eles por erro.
Além dessa tarefa, devíamos atender também aos soldados brancos. Isso não era muito difícil para mim, já que que havia recebido instrução suficiente, durante um ano, no pequeno hospital do doutor Booth.
Estávamos adscritos a uma coluna móvel, que tinha ordens de dirigir-se a todo lugar onde o perigo se anunciasse. Em sua maioria, tratava-se de pessoal montado. Logo que o acampamento era levantado, viamo-nos obrigados a segui-los a pé, com nosso material sobre os ombros. Duas ou três vezes fizemos 40 milhas em um dia. Mas, em todos os lugares onde estivemos, pude agradecer a Deus por dar-nos a oportunidade de ser mais do que úteis, carregando, além das coisas, aos moradores zulus da vizinhança sobre nossas macas, até o acampamento, para atendê-los em sua desgraça, porque haviam sido feridos por erro.
A "rebelião" dos zulus significou muitas experiências novas e muitos motivos importantes para meditar. A guerra dos boers não me colocou os horrores da guerra na forma vívida como o fez a “rebelião”. Não foi uma guerra, mas a caça ao homem, e não somente na minha opinião, mas na de muitos ingleses com os quais falei disso em algumas ocasiões.
Escutar todas as manhãs o informe sobre o dano feito pelos rifles dos soldados entre os indefesos zulus era algo terrível. A taça de amargura se enchia, ao pensar que se não fosse pelo corpo que eu havia formado, os zulus não teriam contado com nenhuma atenção para suas horríveis feridas. Este fato comoveu minha consciência.
Mas havia muitas outras coisas sobre as quais pensar. Existia um território pouco povoado no país. Entre os vales e colinas, de forma muito espaçada, localizavam-se as choças dos assim chamados “não-civilizados” zulus. Enquanto eu percorria, com ou sem os feridos, essa enorme solidão, muito frequentemente submergia-me em profundas meditações.

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