quarta-feira, 9 de setembro de 2009

UMA REVOLUÇÃO NA FILOSOFIA(1)


Começamos nesta edição a publicar a intervenção final de Andrei Zhdanov na conferência que em 1947 reuniu, de 16 a 25 de junho, a maior parte dos filósofos soviéticos para discutir o livro “História da Filosofia Ocidental”, de Georgy Alexándrov. Depois de sua publicação, este livro havia sido incensado na imprensa soviética da época, adotado como livro-texto nas escolas e indicado ao prêmio mais prestigiado do país, o Prêmio Stalin. Como relata Zhdanov, foi o próprio Stalin quem, no Comitê Central do PCUS, chamou a atenção para as deficiências do livro. Decidiu-se convocar uma reunião mais ampla para a discussão dessas deficiências e de suas causas. Nesta reunião, Zhdanov representou o Comitê Central.
Não deixa de ser interessante – no sentido de perceber como a mera propaganda é servida como historiografia – a versão que meia dúzia de “sovietólogos”, bastante bem remunerados em seus cargos nas universidades norte-americanas, deram dessa conferência. Sempre Alexándrov é retratado como um pobre “professor” e “filósofo”, supostamente vítima da truculência de Zhdanov.
No entanto, Alexándrov era membro-suplente do Comitê Central, chefe do Departamento de Agitação e Propaganda, membro do Birô de Organização e diretor da Escola Superior do PCUS; era, além disso, membro da Academia de Ciências da URSS. Depois da discussão de seu livro, continuou membro do Birô de Organização, foi diretor do Instituto de Filosofia da Academia de Ciências e ministro da Cultura. Somente foi afastado de funções dirigentes no partido e no Estado soviéticos pelo herói dos “sovietólogos”, Nikita Kruschev.
Na íntegra da intervenção de Zhdanov, os leitores terão oportunidade de tomar contato com algo muito diferente das versões difamatórias dos “sovietólogos”. Zhdanov, um operário que quando jovem teve seu papel na organização do trabalho voluntário (“sábados comunistas”) destacado por Lenin, e que, durante a II Guerra Mundial, dirigiu Leningrado durante o cerco mais longo da História, era um pensador profundo, que detestava o rame-rame escolástico e burocrático, e que exigia rigor – sobretudo em questões de princípio. Além disso, tinha um estilo rico e um humor refinado.
Naturalmente, não nos deve surpreender que o verdadeiro Zhdanov seja o oposto daquele da propaganda reacionária.
C.L.
ANDREI ZHDANOV
Camaradas: A discussão sobre o livro do camarada Alexándrov não se limita ao quadro dos temas em debate. Ela se desenvolve em todas as direções, levantando também as questões mais gerais sobre a situação da frente filosófica. A discussão se transforma, deste modo, numa espécie de conferência de toda a União sobre a questão das condições dos trabalhos científicos filosóficos. Isto, sem dúvida, é perfeitamente natural e de acordo com as leis do desenvolvimento do pensamento.
A elaboração do livro de história da filosofia, o primeiro livro marxista dessa ordem, representa tarefa de imensa significação científica e política. Não é casual, pois, a atenção dada a essa questão pelo Comitê Central, organizando a presente discussão.
Elaborar um bom livro de história da filosofia significa fornecer à nossa intelectualidade, aos nossos quadros, à nossa juventude, novas e poderosas armas ideológicas e ao mesmo tempo dar um grande passo adiante na estrada do desenvolvimento da filosofia marxista-leninista.
É compreensível, portanto, o elevado teor que se exige para o livro, tal como foi aqui reclamado. O alargamento do quadro da discussão tornou-se, por isso mesmo, útil. Seus resultados serão, sem dúvida, muito grandes, tanto mais que aqui foram tratadas não somente as questões ligadas com a apreciação do livro, mas também os mais vastos problemas dos trabalhos filosóficos.
Permito-me tratar dos dois temas. Estou longe de pensar em resumir as calorosas discussões; isto é tarefa que cabe ao autor do livro, de modo que inicio a discussão pela ordem.
Antes de mais nada, peço desculpas pelo fato de recorrer ao emprego de citações, embora o camarada Baskin, de todas as maneiras possíveis, advertisse a todos nós de que deveríamos evitá-las.
Certamente, a ele, velho lobo do mar da filosofia, é fácil sulcar as marés e oceanos filosóficos sem os instrumentos de navegação, navegando “às cegas”, como dizem os marinheiros. Que me seja concedido, porém, como grumete filosófico, que pela primeira vez ensaia passos no vacilante convés do navio da filosofia durante violenta tempestade, empregar as citações, à guisa de bússola, a fim de me permitir não perder a rota certa.
Passemos ao exame do livro:
Falhas do livro
Penso que temos o direito de exigir de um livro de história da filosofia a observância às seguintes condições, que, no meu modo de ver, são elementares.
Primeiro — É preciso que no livro esteja definido exatamente o objetivo da história da filosofia como ciência.
Segundo — Que o livro seja científico, isto é, baseado nos fundamentos das conquistas contemporâneas do materialismo dialético e histórico.
Terceiro — É indispensável, para que a exposição da história da filosofia não seja escolástica, mas atuante e ao mesmo tempo criadora, que ela esteja ligada diretamente com os problemas contemporâneos e que seja conduzida de modo a projetar as perspectivas do futuro desenvolvimento da filosofia.
Quarto — Que o material citado, baseado sobre fatos, seja completamente acurado e de boa qualidade.
Quinto — Que o estilo da exposição seja claro, exato e convincente.
Certamente, essas exigências não foram satisfeitas no livro.
Antes de tudo, sobre o objetivo da ciência:
O camarada Kivienko ressaltou que o livro do camarada Alexándrov não fornece uma ideia clara sobre o objetivo da ciência e que, embora no livro se encontre grande quantidade de definições, tem particular significação o fato de nele não existir uma definição completa, generalizadora, já que cada definição particular esclarece somente aspectos parciais da questão. Esta observação é completamente correta. O objetivo da história da filosofia como ciência não é definido como tal. A definição dada à pág. 14 é incompleta. A definição da pág. 22, sublinhada em itálico, como definição básica, é visível e essencialmente incorreta, pois, se estivéssemos de acordo com o autor, de que a “história da filosofia é a história do desenvolvimento progressivo e ascendente do conhecimento do homem sobre o mundo que o cerca”, então isto significaria que o objetivo da história da filosofia coincide com o objetivo da história da ciência em geral, e a filosofia pareceria ser a ciência das ciências, o que já há muito foi rejeitado pelo marxismo.
MATERIALISMO E IDEALISMO
Incorreta e inexata é também a afirmação do autor de que a história da filosofia é também a história do nascimento e desenvolvimento de muitas ideias contemporâneas, pois a noção de “contemporâneo” se identifica neste caso com a noção de “científica”, o que, evidentemente, é errado. É indispensável extrair a definição do objetivo da história da filosofia da definição de ciência filosófica dada por Marx, Engels, Lenin e Stalin.
“Este é o lado revolucionário da filosofia de Hegel que Marx tomou e desenvolveu. O materialismo dialético ‘não precisa de qualquer filosofia que fique acima de outras ciências’. Das antigas filosofias persiste ‘a doutrina sobre o pensamento e suas leis, isto é, a lógica formal e a dialética’. E a dialética, na concepção de Marx, de acordo também com a de Hegel, inclui em si a atualmente chamada teoria do conhecimento, gnoseologia, que deve estudar o seu objeto, também historicamente, estudando e generalizando a origem e desenvolvimento do conhecimento, sua transição de não conhecimento para o de conhecimento” (V. I. Lenin — Obr. Comp. T. XVIII, pág. 11 — em russo).
A história científica da filosofia, consequentemente, é a história da germinação, nascimento e desenvolvimento da concepção materialista científica e suas leis. À medida que cresce o materialismo e este se desenvolve na luta contra as correntes do idealismo, a história da filosofia é também a história das lutas do materialismo contra o idealismo.
No que se refere ao caráter científico do livro, do ponto de vista da utilização das conquistas contemporâneas do materialismo dialético e histórico, também sob esse aspecto o livro tem muitíssimas e sérias falhas.
REVOLUÇÃO NA FILOSOFIA
O autor descreve a história da filosofia e a marcha do desenvolvimento das ideias e sistemas filosóficos como uma evolução normal através de acréscimos e mudanças quantitativas sucessivas. Cria-se, assim, a impressão de que o marxismo surgiu como simples sucessor no desenvolvimento das doutrinas progressistas anteriores, principalmente da doutrina dos materialistas franceses, da economia política inglesa e das escolas idealistas de Hegel.
O autor, na pág. 475, diz que as teorias filosóficas criadas antes de Marx e Engels, embora contivessem às vezes grandes descobertas, não foram, contudo, consequentes até o fim e científicas em todas as suas conclusões. Tal definição distingue o marxismo dos sistemas filosóficos pré-marxistas somente como doutrina consequente até o fim e científica em todas as suas conclusões. Isto nos mostra que a diferença do marxismo em relação às doutrinas filosóficas pré-marxistas consiste somente em que estas filosofias não foram consequentes e científicas até o fim, como também que os velhos filósofos somente “se equivocaram”.
Como veem, trata-se aqui somente de mudanças quantitativas. Isto, porém, é metafísica. O aparecimento do marxismo constituiu uma verdadeira descoberta, foi uma revolução em filosofia. Certamente, como em qualquer descoberta, como em qualquer salto, interrompe-se a graduação em cada transição para o novo estado; o marxismo, pois, não podia ter origem sem uma preliminar acumulação de mudanças quantitativas em filosofia, e, neste caso, somas de desenvolvimento da filosofia até a descoberta de Marx e Engels. O autor, evidentemente, não compreende que Marx e Engels criaram uma nova filosofia, que qualitativamente se diferencia de todas as predecessoras, não obstante estas terem sido também sistemas filosóficos progressistas. Acerca das relações da filosofia de Marx com todas as predecessoras, de cuja transformação resultou o marxismo em filosofia, transformando-a em ciência, todos têm conhecimento. O que é mais estranhável é que o autor concentra a sua atenção não no que é novo e revolucionário no marxismo, em comparação com os sistemas filosóficos predecessores, e sim no que o une com o desenvolvimento das filosofias pré-marxistas. No entanto, os próprios Marx e Engels disseram que sua descoberta significava o fim das velhas filosofias.
“O sistema de Hegel foi o último, a mais acabada forma de filosofia, desde que a concebamos como ciência especial, que fica acima de todas as outras ciências. Junto com ela, de toda a filosofia restou somente o método dialético do pensamento e a concepção de todo o mundo natural, histórico e intelectual como de um mundo eternamente mutável e móvel, que se encontra em permanente processo de nascimento e perecimento. Agora, não somente à filosofia, mas também à toda ciência foi imposta a exigência de descobrir as leis do desenvolvimento deste eterno processo de transformação em cada domínio separado. Nisto consiste a herança deixada pela filosofia hegeliana aos seus sucessores”. (F. Engels — Anti Dühring, 1945, pág. 23-24 — edição russa).

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