quarta-feira, 3 de outubro de 2012

O que acontece no STF (2)

Coisas muito estranhas aconteceram na segunda-feira. Com todo respeito ao ministro Celso de Mello, os trechos que divulgou, através do site do STF, de seu voto na Ação Penal 470, são apenas a retórica udenista do “mar de lama” elevada, miraculosamente, a parecer jurídico. Não por acaso, a única autoridade citada nesses trechos (como “erudito” e “extremamente preciso” em “ética” e “espírito republicano”) para amparar o voto do ministro é um tucano de copa e cozinha, o sr. Celso Lafer – membro da ala adesista no governo Collor e, hoje, lembrado como o ministro de Fernando Henrique que retirou prazeirosamente os sapatos no aeroporto de Nova Iorque, oferecendo-se para ser revistado pelos meganhas ianques, talvez o gesto de submissão mais ostensivamente indecente da história republicana (haja “ética” e “espírito republicano”!). Pior até mesmo que o beijo em Eisenhower, perpetrado nos idos de 1946 pelo assanhado presidente da UDN, o então deputado Otávio Mangabeira, na munheca do assustado general e futuro presidente norte-americano.

Poderíamos dizer que, amparado em tal autoridade em ética e espírito republicano, só se podia chegar a um monótono lamento pelo fracasso do golpe de Estado em 2005, o que tem muito pouco a ver com o Direito e com as funções do STF – aliás, é o oposto tanto de um quanto das outras. Mas o leitor pode tirar suas próprias conclusões sem que tenhamos de avançar algo semelhante. Ainda bem que estamos numa democracia.

Quanto ao voto do presidente do STF, Ayres Britto, o que chama atenção é que ele próprio já foi candidato a deputado federal pelo PT – portanto, deveria saber do que está falando. E, realmente, ele percebe a relevância da discussão sobre a finalidade dos recursos recebidos (caixa dois de campanha ou para votar em tal ou qual proposição), porque sabe como são feitas as campanhas eleitorais no Brasil. Mas sai-se dessa dificuldade simplesmente afirmando que “não se pode alegar que há caixa dois com dinheiro público”, quando é essa última parte que não foi provada - pois a simples afirmação de que os recursos do fundo Visanet são públicos, não os transformam em dinheiro público (tanto é verdade que o próprio Ministério Público pediu a absolvição do ex-ministro Luís Gushiken, apesar de acusá-lo de desviar recursos do Visanet, mas não de se apropriar desses recursos).

Ayres também não resolve o problema dizendo que a admissão de caixa 2 “propiciaria o mais amplo guarda-chuva para converter em pecadilhos eleitorais os mais graves delitos contra a administração pública”, pois a questão é se foi ou não caixa dois – o que nada tem a ver com “pecadilhos”, porém menos ainda com “graves delitos” (e, naturalmente, nada pode ser convertido em coisa diferente de si própria simplesmente porque o ministro assim o quer).

Do mesmo modo, a exacerbação do estilo rococó que caracteriza o ministro (“desarrazoada que toca os debruns da teratologia argumentativa”) também não é uma solução. Alguns críticos ingleses chamavam o rococó de “estilo bastardo”. Realmente. Mas jamais nos ocorreu que esse problema extrapolasse os limites da estética...
No entanto, é bastante desarrazoada a afirmação de que “não se pode cogitar de caixa 2 se a época dos fatos não coincidiu com qualquer processo eleitoral em curso”. Exceto se o ministro terminou sua campanha a deputado sem nenhuma dívida (deve ter sido, nos últimos 30 anos, o único candidato que conseguiu tal feito), não pode pretender que outros aceitem como sério este suposto argumento - até porque, como está nos autos, o motivo do início dessas operações foi o endividamento do PT e aliados depois da campanha de 2002. E, de acordo com o ministro Barbosa, o que está nos autos não pode ser contestado...

Menos cômica e mais grave é a afirmação de que o crime de corrupção passiva “nada tem a ver com a destinação do produto da propina”. Sem uma destinação corrupta não se pode dizer que tal ou qual dinheiro é “propina” - nem que haja corrupção onde não houve um ato de corrupção. O ministro, portanto, está dando como provado o que não foi, ou seja, estabelecendo como prova o que é mera e arbitrária afirmação - em si, vazia de conteúdo, exceto como preconceito. Entretanto, palavras como “propina”, sem nenhuma prova, somente servem à perseguição política da mídia.

Existem várias razões para alguém receber dinheiro de outrem. As razões corruptas, evidentemente, são aquelas que implicam, em troca do dinheiro, a realização de um ato de corrupção. Parece óbvio que sem o último não se pode qualificar o recebimento de algum dinheiro como crime de corrupção passiva (evidentemente, por parte de quem recebe). É tão óbvio, que sempre foi assim no Brasil, quiçá no mundo.

Na coluna anterior, íamos comentar o novo princípio jurídico introduzido pelo relator da AP 470, Joaquim Barbosa, segundo o qual ninguém (ou, pelo menos, nenhum outro ministro do STF, menos ainda se for o revisor) pode discordar do voto do relator – ou, talvez, apenas quando este é um ministro chamado Joaquim Barbosa – sob pena de ser condenado pelos mesmos crimes de que os réus são acusados (no frigir dos ovos, é o que significa a acusação de “vista grossa” - ou seja, cumplicidade - tão euforicamente endossada pela

“Veja”, que só é cúmplice do sr. Carlos Cachoeira).
Não comentamos essa inovação no Direito brasileiro porque o assunto nos pareceu, àquela altura, demasiado deprimente depois do que todos viram pela televisão. Agora, só é preciso acrescentar que a nova doutrina do ministro Barbosa se resume ao mote dos borgs, aquela espécie desumanóide que capturou o capitão Picard, da espaçonave Enterprise, e quase destrói a Terra: é inútil resistir à mídia, por mais corrupta, degenerada e, inclusive, decadente que ela seja - ou esteja.

Na edição passada, mostramos que o relator, sob a forma de voto, está refazendo a acusação – isto é, tentando cobrir a sua falta de substância. Para além da forma, que não é pouco importante, a questão de essência é que não basta a convicção do juiz (nem a do promotor, evidentemente) para condenar quem quer que seja – é preciso provar, ou seja, demonstrar que se chegou à essa convicção em virtude de provas.
Porém, pelo entendimento do relator, é desnecessário provar a ilicitude do uso de qualquer recurso. Em bom português: é desnecessário provar que o dinheiro foi usado para fins ilícitos – ou em troca de determinado fim ilícito - para condenar alguém por corrupção.

Particularmente, não importa se o dinheiro constituiu caixa 2 de campanha (uma irregularidade eleitoral) ou compra de voto no Congresso (o que é crime de corrupção). Basta receber algum dinheiro para ser condenado por corrupção, sem que, a rigor, seja preciso provar que, em troca desse dinheiro, praticou-se algum ato corrupto – como seria a compra de votos no Congresso. Inacreditavelmente, de acordo com a tese do relator, a acusação de crime foi desvinculada de um ato criminoso específico.

Mas, o leitor atento, naturalmente, perguntará: e a origem dos recursos? Se não importa o uso, certamente, deve importar a origem.
Não, leitor, também não é necessário provar que a origem dos recursos é ilícita – caso contrário, Barbosa não poderia dizer que o fato do PTB ter recebido R$ 4 milhões em acordo eleitoral com o PT é prova suficiente de corrupção por parte do último, pois não foi provado que a origem desses recursos tenha sido ilícita, muito menos que seu objetivo tenha sido outro.

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