segunda-feira, 10 de novembro de 2014

SEM ESTADO NÃO EXISTE "LIVRE EMPRESA"


ENTREVISTA COM O PROFESSOR E CIENTISTA POLÍTICO LUIZ ALBERTO MONIZ BANDEIRA

Concedida a Túlio Velho Barreto, do Instituto de Pesquisas Sociais – INPSO da Fundação Joaquim Nabuco, por e-mail, em 18/8/2004. 



P - Em sua opinião, que legado pode ser atribuído ao presidente Getúlio Vargas? 

Moniz Bandeira: O Brasil de hoje é o maior legado de Vargas. Sem Volta Redonda, Petrobrás e outros empreendimentos que ele promoveu não haveria ocorrido a industrialização e o Brasil continuaria como um país agro-exportador, a depender do café e outras commodities e a depender fundamentalmente do mercado americano. O que se pode dizer é que a história da República, no Brasil, divide-se entre antes e depois de Vargas. 

- Como o senhor analisa o nacional-desenvolvimentismo hoje? Ainda é possível pensar no Estado como principal impulsionador da economia?  

Moniz Bandeira: Expressões como nacional-desenvolvimento nada explicam. O Estado foi e continua sendo o principal fator de impulsão da economia, inclusive nos Estados Unidos, apesar da retórica de livre-empresa. A indústria bélica e todo o complexo que gira em torno dela dependem das vultosas verbas que o Estado americano lhes destina, a título de defesa. Há uma transferência do dinheiro dos contribuintes para alimentar essas indústrias das quais os Estados Unidos hoje dependem. A redução do Estado, etc., em países como o Brasil, significa entregar a economia ao controle das mega-empresas americanas. Nem os Estados Unidos nem a Alemanha tornaram-se grandes potências econômicas sem rigoroso protecionismo. Vargas viveu em um Brasil que era predominante agrícola, dependente das exportações de café. Jango governou um Brasil em que a interesses da indústria tomara forte impulso no governo de JK. O Brasil de hoje é um país industrializado, a maior potência industrial do hemisfério sul e uma potência agrícola. Tais expressões, como nacional-desenvolvimento, são empobrecedoras, não podem acompanhar e não refletem a realidade, que está em constante mutação. 

P - Em que medida o senhor associa o nacional-desenvolvimentismo ao trabalhismo? O senhor acredita que tais idéias estão superadas?  

Moniz Bandeira: Não me agrada, já disse, a expressão nacional-desenvolvimento, porque não implica realmente qualquer conceito. Quanto ao trabalhismo, foi a manifestação nacional, brasileira, do que na Europa foi a social-democracia após a guerra de 1914-1918, ou seja, uma corrente política que tratou de empreender reformas sociais dentro da moldura do sistema capitalista. Tanto mais se tenta enfeixar a realidade em expressões ou mesmo conceitos, mais se afasta da realidade, que é dinâmica. As palavras dão estabilidade ao conceito, mas a realidade está sempre em transformação. 

P – Tais idéias estão superadas ou podem ser atualizadas? Qual o papel reservado ao Governo Lula e ao PT nesse processo? 

Moniz Bandeira: Todos os fenômenos são e não são superados. O rio continua rio, mas as águas já passaram e estão a passar e continuarão a passar. E daí que não se pode entrar no mesmo rio duas vezes. O governo Lula e o PT estão a empreender, em outra etapa e em novas condições históricas, um caminho similar ao que Vargas, JK, Jango e o PTB trilharam, até o golpe militar 1964, buscando a retomada do desenvolvimento econômico nacional, mediante o entendimento entre parte do empresariado e a classe trabalhadora, e instrumentalizando a política externa. Mas as condições históricas, repito, são diferentes. Nada se reproduz do mesmo modo. O Brasil de 2004 não é o de 1954 nem o de 1964. É outro. É uma continuação, uma projeção, mas não é o mesmo de outrora. 

P - Qual o significado da morte de Leonel Brizola? Com ela, desapareceu o último remanescente daquela tradição ou o trabalhismo já deixara de fazer sentido com o golpe militar de 1964 e o desaparecimento prematuro de Jango? 

Moniz Bandeira: Leonel Brizola desempenhou, durante algum tempo, importante papel na política nacional. Mas desperdiçou o acervo que herdara e o que ele próprio construíra quando defendeu a posse de João Goulart, em 1961, e na resistência ao regime militar. Politicamente já havia desaparecido, embora fisicamente vivo, em virtude dos seus desacertos políticos e do péssimo governo que realizou no Rio de Janeiro, sobretudo entre 1991 e 1995. Não se renovou. Continuou com um discurso envelhecido pela transformação econômica, social e política que ocorrera no Brasil. Continuou como se ainda vivesse em 1961, quando formou a Cadeia da Legalidade para defender a posse de Jango. E quem pretende continuar o mesmo que quando era jovem, este envelheceu. Tornou-se obsoleto. Foi o caso de Brizola. Quanto ao trabalhismo, na política, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma, como disse Lavoisier com respeito à natureza. 

P - Muitos acreditam que o único político que pode ter seu nome associado a uma "era" é o de Vargas. Daí, falar-se de uma "era Vargas". O que o senhor pensa a respeito? A "era Vagas" acabou ou resta algo dela? 

Moniz Bandeira: A “era Vargas”, por assim dizer, acabou com o próprio Vargas, como a de JK também acabou quando ele deixou o governo.  Mas a obra como a de Vargas permaneceu. Volta Redonda foi privatizada, mas o Brasil industrial, grande produtor de aço aí está. A Petrobrás continua. O golpe militar de 1964 tentou rever a política exterior, que Vargas implementra, JK desenvolvera e Jânio Quadros e João Goulart efetivaram, afastando-se das diretrizes de Washington. Mas a mesma linha de política foi retomada no governo de Costa e Silva, com a “diplomacia da prosperidade”, e Geisel lhe deu ainda mais ênfase, quando firmou o acordo Nuclear com a Alemanha e rompeu o Acordo Militar com os Estados Unidos, vigente desde 1952.Houve continuidade nas mudanças, como agora ocorreu, de FHC para Lula. 

P - O "novo sindicalismo" do final dos anos 70, que teve no presidente Lula um de seus principais artífices, surgiu, cresceu e consolidou-se através da CUT e do próprio PT contestando a legislação sindical e propondo modernizar a trabalhista. Em que medida o Governo Lula-PT poderá contribuir para pôr fim a "era Vargas"? Ou o Governo Lula-PT pode ser uma atualização do nacional-desenvolvimentismo e do trabalhismo varguista? 

Moniz Bandeira: Não há novo nem velho sindicalismo. A teoria sobre o populismo de Vargas e Goulart foi uma falácia. O PTB surgiu também das bases sindicais, em 1945, os “queremistas”, que apoiavam a Constituinte com Vargas. Como no caso do PT, foi construído com líderes operários, que a oposição (comunistas e UDN) passou a chamar de “pelegos”. Depois os comunistas perceberam que não podiam fazer política sindical sem aliar-se aos líderes que eles chamavam de “pelegos”, ou seja, aqueles que acomodavam o cavalo (classe operária) para a burguesia montar. A partir dos anos 70, o movimento operário apenas tomou nova configuração em conseqüência do próprio desenvolvimento do processo industrial, que aumentou o operariado urbano. E que fazem agora Lula e o PT senão aliar um segmento do empresariado à classe média e ao operariado? Continuam, portanto, o diálogo e a colaboração entre essas classes, intermediado pelo PT, como antes fora pelo PTB. 

P - Mas, diferentemente de Vargas e Jango, e do PTB, por exemplo, o Governo Lula e seu partido não têm sido submisso aos ditames de Washington e dos agentes financeiros internacionais, ambos de natureza liberal? 

Moniz Bandeira: Vargas e Jango também foram acusados, na época, de serem submissos aos ditames de Washington. No primeiro governo (1930-1945), o Brasil terminou por permitir a instalação de bases americanas em seu território. E o segundo governo Vargas, em 1952, firmou o Acordo Militar e fez outras concessões. Jango tentou várias vezes aplicar um plano de conformidade com as exigências do FMI e dos agentes financeiros internacionais, mas não teve condições, devido à forte oposição interna. Também Brizola acusou-o de ceder aos Estados Unidos na questão das concessionárias de serviço público. San Tiago Dantas, na época, chegou a diferenciar a esquerda entre “positiva”, defensora das reformas, da “esquerda negativa”, que queria fazer a revolução. O espetáculo hoje se repete. E Lula e o PT não tinham condições de realizar uma política financeira diferente. A internacionalização da economia é imensamente maior do que na época de Vargas e de Goulart. Vargas e Goulart buscaram acomodação com os Estados Unidos, ao mesmo tempo em que resistiram, sobretudo, na política exterior, como agora faz o governo de Lula, defendendo os interesses nacionais. 
P – Então, para o governo Lula e o PT não poderia ser diferente?.. 

Moniz Bandeira: A economia mundial não é uma soma de economias nacionais. É um todo, uma realidade viva, porque o capitalismo foi o único sistema econômico com capacidade de expansão mundial. O Brasil não tinha, portanto, condições de seguir um caminho muito diferente nos anos 90. Mas esse modelo liberal, que foi imposto pelo FMI, Banco Mundial, Departamento do Tesouro dos Estados Unidos e outros agentes financeiros, aprofundou as contradições. E não se pode descartar a possibilidade de que recomece outra época de estatizações. Lula já encontrou o modelo neoliberal implantado. Não podia nem pode voltar atrás. Porém, parou as privatizações. E sua política financeira não poderia ser outra, porque manter o eqüilíbrio fiscal, não gastar mais do que se arrecada, é imprescindível a qualquer regime. Com inflação, moeda podre, não pode haver redistribuição de renda. Se Lula agisse de outro modo seu governo seria tragado pela crise econômica e financeira, com a fuga de capitais que se desencadearia. 

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[LUIZ ALBERTO MONIZ BANDEIRA] Doutor em Ciência Política e professor titular de História da Política Exterior do Brasil na Universidade de Brasília – UNB.
http://www.fundaj.gov.br/

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