segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Os Chicago-boys e suas obtusas mentes colonizadas

NELSON WERNECK SODRÉ
O último produto ideológico intensamente trabalhado e propagado, o último entorpecente das mentes, vem sendo o conceito de globalização, com tudo o que ele encerra e mais tudo o que pretende alcançar. É o produto de uma época histórica de transição, quando uma época entra em crise e os modelos, padrões e significações sofrem distorção inevitável. É preciso, para assegurar a continuidade da exploração, convencer que determinadas nações têm direito a comandar o desenvolvimento, enquanto outras devem submeter-se a esse desenvolvimento, como tudo o que convém às primeiras, tidas como desenvolvidas, avançadas etc.
O produto novo no arsenal conceitual da época de transição é o de globalização. Estamos num mundo só e, em consequência, os que já estão desenvolvidos, os que já são ricos, devem continuar assim, e os demais devem conformar-se em continuar pobres, ou menos desenvolvidos.
A palavra de ordem dos chicago-boys, a partir daí, transformando em refrão o conceito de globalização, foi, em primeiro lugar, da supremacia absoluta do mercado, na organização econômica, e a supremacia absoluta das normas do capitalismo, tal como vigoravam nos Estados Unidos. A velha querela entre protecionismo e livre cambismo que, por tanto tempo, ocupou economistas e políticos e que presidiu a polêmica, em nível nacional e em nível internacional, não tinha mais razão de ser. Num mundo só, num mercado só, como poderiam subsistir e ser consideradas normas oriundas de um mundo desaparecido? Agora, o mundo era uma coisa só, uma planície sem eminências, e as regras nele vigentes deveriam, por tudo isso, ser ditadas de um centro único, aquele que, vitorioso na "guerra fria", era herdeiro universal e absoluto do mundo dividido em nações e mercados separados por tarifas alfandegárias. Todos os países deveriam, e rapidamente, abolir, para a troca internacional, todas as restrições à entrada de mercadorias. Quem estava estabelecido em condições de dominação seria, inevitavelmente, beneficiário dessa nova situação.
A globalização encontrou como regentes da orquestra, e por todas as razões, as sete nações mais desenvolvidas, o G-7. No chamado Consenso de Washington, elas, soberanamente, baixaram as regras: nada de protecionismo, mercado único e aberto. Para a doutrinação dos chicago-boys não era preciso mais. Por formação, teóricos de uma economia que esquece a realidade de cada país, eles saíram pelo mundo, pregando a nova religião do lucro, religião que, como logo se tornou claro, mereceu títulos os mais encomiásticos.
Tratava-se, em primeiro lugar, de estabelecer uma nova ordem. Esta colocação, que nos lembra com muita nitidez as de Hitler e do mundo com o qual ele sonhava e para o qual já conhecia todas as regras a impor, não poderia surpreender aos que estivessem acompanhando o desenvolvimento da velha luta ideológica, que agora se processava em outras condições e em outros níveis.
Do ventre da globalização surgiu aquilo que ficou conhecido como neoliberalismo. E este, para melhor confundir os incautos, tratou de fantasiar-se: a fantasia mais vistosa foi a de moderno. Há, realmente, palavras que contêm uma certa sedução: vanguarda, novo, moderno. Ocultam, às vezes, traficâncias que não escapam aos menos avisados. Mas o condão de disfarce torna o percurso delas e mesmo a influência algo de difuso, fascinante, brilhante. O neoliberalismo foi, pois, a bandeira com que os novos profetas passaram a pregar a nova religião econômica, nascida dos escombros, da ruína e das cinzas do mundo dividido, primeira criação do mundo unificado, aquela que, no fim das contas, definiria o fim da História.

O neoliberalismo renega o velho arsenal de conceitos com que os dominadores escondiam os traços mais ásperos de sua dominação. Antigamente, conceitos como pátria, por exemplo, tinham extraordinário vigor. Outro conceito largamente usado então, era o de soberania. O Estado, essa entidade política que, moldada pelos princípios da Revolução Francesa, com o direito disfarçado com roupagens colhidas nos romanos, tinha importância muito grande. Era o baluarte da soberania das nações, era o que a pátria tinha de característico, aquilo que merecia ser defendido e preservado.
O neoliberalismo atirou ao lixo esse arsenal conceitual. Foi relegado ao desuso. Pior: foi tido como definindo o atraso, o oposto da "modernidade". De cambulhada, instituições, como as Forças Armadas, Exército, Marinha, Aeronáutica deviam ser, também, relegadas a plano secundário. Eram instituições obsoletas. Nada tinham a ver com a "modernidade". Consumir verbas para mantê-las era drenar dos cofres públicos aquilo que deveria, sem maiores preocupações, servir à globalização: pagar as parcelas de juros de empréstimos externos ou transferir lucros de grandes empresas multinacionais, que ignoravam limites de nações e muito mais ainda taxas de lucro destinadas a manter as nações. O neoliberalismo, assim, vinha com roupa nova, muito bem confeccionada, primorosa e rigorosamente talhada, substituir o que o colonialismo, em velhos e distantes tempos, usara tanto e com tanto êxito. Tratava-se, no fim das contas, de um novo colonialismo, travestido, enfeitado, cheio de truques e momices.
Para o neoliberalismo, o grande inimigo do progresso, ou do desenvolvimento, era o Estado. O Estado era por definição mau gestor, não deveria operar na área em que as empresas privadas operavam, não deveria, de forma alguma, ocupar-se de tarefas que deveriam ser próprias da área privada. Assim, tratava-se, antes de mais nada, de enxugar o Estado, de despojá-lo de empresas que criara em muitos casos por força da incapacidade financeira ou pelo puro desinteresse da área privada. Os serviços públicos que eram, ao tempo da economia colonial, e ao largo da economia dependente, geridos por empresas estrangeiras, as ferrovias que os ingleses construíram, com contratos privilegiados com um século de duração e garantia de juros, toda estrutura econômica que o desenvolvimento material e o processo de urbanização exigiram, e que haviam passado à gestão do Estado, deveriam ser postos em hasta pública e privatizados.

Privatizar, eis a solução para o neoliberalismo. As empresas estatais, surgidas a partir da ruína da estrutura de serviços gerados pelos investimentos estrangeiros, que largamente e secularmente as exploraram, deveriam passar à área privada. E havia, finalmente, que romper o movimento pendular que nos forçara, por exemplo, a aturar e engordar a Light & Power por tantos anos, para depois comprá-la, quando se aproximavam do fim os seus contratos de exploração. Deveríamos voltar a entregá-lo a uma multinacional, e que, agora, aproveitaria dos grandes investimentos que o Estado realizara para transformá-la em entidade apta a prestar serviços.
Nesse vai-e-vem de compra e venda, como é fácil deduzir, quem paga é o povo, que, entre outras mazelas, comprou caro e pretende vender barato, nesse tipo de negócio em que o imperialismo se especializou e que o tornou no que é.
Lutamos arduamente para convencer os meios políticos de que o Brasil tinha petróleo, porque a ciência estrangeira afirmava positivamente que não tínhamos. Adiante, assumimos os riscos de procurar petróleo quando a "ciência" estrangeira e os chicago-boys da época afirmavam de pés juntos que não dispúnhamos de capitais e só eles, que dispunham de capitais, poderiam enfrentar a tarefa gigantesca dessa prospecção difícil. Acabamos encontrando petróleo e o Estado, uma vez que a iniciativa privada não tinha envergadura para isto, assumiu o risco do investimento. Passaram a afirmar que não dispúnhamos de técnica para a prospecção e eles, que dispunham da técnica, deveriam ser encarregados disso. Criamos ou aprendemos a técnica petrolífera e somos hoje mestres nela. Pois bem, o neoliberalismo quer que entreguemos a empresa petrolífera aqui montada pelo Estado à iniciativa privada, isto é, às multinacionais do ramo. Mas entregar a empresa já pronta, em funcionamento, uma empresa vitoriosa e próspera. Em que, aliás, o Estado não coloca um real, para empregar uma moeda envilecida.
Trata-se, no fim das contas, de passar recibo de nossa pretensa incapacidade, desta incapacidade que os chicago-boysafirmam, com ênfase singular, que é um traço nacional. A ideologia do colonialismo, antes, em velhos tempos, pretendia nos convencer, e convenceu a muitos, principalmente governantes, recrutados numa classe dominante retrógrada e inepta, de que estávamos condenados ao atraso, porque grande parte de nossa força de trabalho era negra e o negro é racialmente inferior; a nos convencer de que jamais poderíamos atingir alto nível de civilização porque vivíamos nos trópicos e a civilização é privativa, segundo eles, dos climas frios.
Era moda, ao tempo da vigência triunfal da ideologia do colonialismo, que os nossos credores, aqueles que auferiram lucros prodigiosos com o nosso endividamento, enviassem para cá, para ensinar a esses sauvages de la bas, como diziam os colonialistas franceses, elementos de economia, esclarecendo sempre que não poderíamos gerir senão segundo os princípios que eles adotavam. O último desses financistas, não muito antes do movimento de 1930, deixou um relatório, em que propunha as normas que deveriam presidir a reforma da nossa economia, um relatório que Normano, um dos poucos economistas que entenderam a especificidade do nosso desenvolvimento material, bem qualificou e com rigor como modelo de alienação. Aquele precursor dos chicago-boys era cego para a realidade, mas com uma diferença: ele era inglês e nada tinha conosco, a não ser o fato de estar aqui para servir aos nossos credores externos, então predominantemente ingleses; e os nossos grotescos chicago-boys nasceram no Brasil. Não cometerei a injúria de dizer que são brasileiros.

Na época em que ia mais quente a chamada "guerra fria", um político brasileiro, que exerceu a chefia das nossas relações exteriores, criou, na ânsia de servir aos seus mandantes e amos, a teoria das "fronteiras ideológicas". Esta doutrina, confessada ou não, presidiu por muitos anos a nossa política externa e determinou a orientação da política interna. Deveríamos, segundo tal tese, dar privilégios totais aos norte-americanos, nossos "aliados", porque era nosso dever ajudá-los a salvar aquilo que, um tanto ironicamente, alguns apelidaram de "civilização cristã e ocidental".
Os chicago-boys, em nossos dias, depois de finda a "guerra fria", por inanição de um dos partidos ou lados, fazem o mesmo serviço, já sem a salvaguarda do anticomunismo. Querem porque querem que não haja soberania brasileira. Vão muito mais longe porque, agora, mais objetivos, pretendem que o Estado, aqui, deixe de funcionar ou funcione apenas naquilo que não dá lucro e que, para dizer a verdade, será atirado a segundo plano, como vem sendo, a educação, a saúde e aquilo que chamam "segurança".
Tudo o mais, tudo o que dá lucro, deve ser privatizado, isto é, deve pertencer à área privada, com uma condição importante: sem diferenciar as empresas, podendo, inclusive, ser estrangeiras, tratadas em pé de igualdade com as brasileiras, por definição constitucional arrancada a uma reforma da lei magna de 1988 por um artifício inconstitucional.
O Brasil, convém repetir esta verdade há muito conhecida, apresenta uma sociedade que se constitui em modelo de desigualdade. Em 1986, 51,3% da renda total brasileira estavam concentrados em 10% da população. Hoje, dados de 1992 mostram que os 20% mais pobres ficam com 2,1% da renda e os 20% mais ricos ficam com 63%.
A concentração da renda é um fenômeno mundial e assinala apenas a crise do capitalismo que, por isso mesmo, procura reordenar o mundo de acordo com os interesses dos que detêm a maior parcela do capital.
É o mundo a que estamos assistindo, com as populações famintas caminhando desesperadamente em busca do trabalho, com ondas de migração inéditas na história, gerando conflitos por toda a parte. O chamado primeiro mundo não apresenta cenário invejável, pelo contrário, nele, o que se vê é um quadro de pobreza e de degradação, inclusive de costumes, flagrante no desespero dos jovens, que sentem a degradação desse mundo e a ausência de perspectivas para eles mesmos, que mal conseguem ingressar no mercado de trabalho.
Por toda a parte, o mundo assiste, em meio à incerteza e à perplexidade, o renascimento da violência, ainda a violência política, geradora das novas ondas de fascismo e de nazismo e de propostas de solução dos problemas da sociedade pela exclusão e pelo uso da força. Estamos longe do paraíso. O neoliberalismo tem sido a fórmula mágica com que um mundo, o primeiro, afundado em crise, tenta transferir ao terceiro, a nós que nele vivemos, os seus problemas.
Surgem, então, os contrastes mais escandalosos: de um lado, o avanço exponencial das técnicas industriais baseadas no aumento da produtividade, proporcionando uma reordenação do mercado de trabalho, e, de outro, as crescentes ondas de desemprego.
Por toda a parte, com repercussão aqui, por força da imitação desesperada apresentada pelos chicago-boys como panaceia, prega-se e adota-se a tendência para reduzir a seguridade social de forma a proporcionar somente nível de subsistência a quem vive do trabalho. Como bem sabemos, estamos no Brasil da "modernidade" e da "nova ordem", buscando, afanosamente, e no mesmo caminho apresentado pelos modelos externos que pretendem comandar o mundo, relegar a previdência em que o Estado assume o seu papel a um sistema semelhante, entregando o mercado ao investimento privado estrangeiro, que dele deve auferir os lucros que procura, sem a mais distante preocupação com a sorte dos assistidos. A previdência é colocada, agora, no mercado como objeto da cobiça, para, ao que se apregoa, aliviar o Estado de uma de suas tarefas fundamentais.
Ora, e apenas de passagem, convém lembrar que a receita total da Previdência, no Brasil, representa 6% do PIB. Na Holanda, é de 20%; na França, 18,6%; na Espanha, 10,6%; em Portugal, 9,8%; nos Estados Unidos, 6,9%; no Panamá, 7,8%; na Argentina, 7,4%; no Uruguai, 7,3%; na Costa Rica, 7,1%.
E a participação do Estado na Previdência?
No Brasil, esta participação, tomando o total dos encargos sociais, representa 21% do PIB. Pois bem, na Suécia, essa participação é de 55,9%; no Uruguai, é de 50,9%; na Alemanha, de 49,4%; na Argentina, de 40,9%; no Canadá, de 37%; no Chile, de 33,9%; nos Estados Unidos, de 29,3%; em Portugal, de 27%; no Paraguai, de 26,7%; na Tunísia, de 22%.
O peso da força de trabalho na produção é de 63% dos custos, na França; de 60%, na Alemanha; de 46%, na Holanda; de 41%, na Itália; de 38%, na Espanha; de 35%, nos Estados Unidos; de 34%, na Suécia; de 33%, no Japão. No Brasil, mal atinge os 21%.
Por outro lado, certas ficções, como a da existência de um mercado livre, em que todos podem se apresentar em igualdade de condições, dispensando a intervenção reguladora do Estado, ignoram deliberadamente o desnível entre desenvolvidos e subdesenvolvidos.
A pregação em torno desse fictício mercado livre, que não existiu em tempo algum e que o mundo moderno, nas condições que agora apresenta, não tem a mínima condição de fazer funcionar, esconde o conteúdo do problema. As relações do Estado com a sociedade e as relações do Estado com o indivíduo são propositadamente esquecidas, dadas como inexistentes ou aceitas como constantes e imutáveis, quando são, na realidade, relações complexas, historicamente condicionadas. São, principal e essencialmente, relações de natureza política.
Não há Estado neutro. É uma entidade política, sujeita ao jogo político, inclusive, para chegar aos detalhes, ao jogo eleitoral. Ora, é este aspecto de entidade política, inerente ao Estado, que os tecnocratas do neoliberalismo pretendem destruir, quando pregam a sua ausência, em benefício de uma entidade fictícia, a do mercado livre. O Estado ideal, para o neoliberalismo, é um Estado mínimo, sem nenhuma interferência na estrutura econômica, na esfera da produção, e sem nenhuma função reguladora.
Como neoliberais, esses tecnocratas admitem e aceitam como dogma que a economia é uma técnica e não uma política. Daí odiarem a presença de uma entidade política, que poderia, pelas contingências políticas, romper a estabilidade de uma forma estabelecida como se fosse eterna, a forma ideal de dominação, a forma de dominação com que sonham os dominadores.
os Chicago-boys e suas obtusas mentes colonizadasA realidade não importa, as características nacionais não importam, os interesses do povo não importam. Ideias arroladas como obsoletas, não por serem antigas, mas por se oporem a essa visão simplista e unilateral da realidade, – a ideia de nação, a ideia de soberania, a ideia de pátria – são esquecidas ou negadas, como se não existissem. Mas o fato é que elas existem, traduzem relações sociais e estão longe de funcionarem como técnicas, quando o receituário dita as regras. Regras e receituário que obedecem a interesses muito poderosos.

A chamada globalização, dogma em que se apoia o neoliberalismo desenfreado que ocupa o palco, entre nós, agora, é uma ideologia de submissão, de desconhecimento do que existe em nós de nacional, de brasileiro, de popular. É claro que se trata de mais uma aventura, de mais um estratagema da dominação secular. E, também, uma ideologia peculiar a um mundo que conhece e sofre a transição de uma época histórica para outra. O neoliberalismo é um elemento de época histórica em agonia, o pressentimento de final próximo, de extinção. Nós, no Brasil, não pretendemos, e o povo logo dirá como, participar desse funeral...

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