segunda-feira, 9 de julho de 2012

Como terminou o 9 de julho

Manifesto do Cel. Herculano de Carvalho, comandante da Força Pública de SP em 32


“Um crime permitir-se que aqueles moços se expusessem às balas adversárias, às granadas, ao metralhar dos aviões, e tivessem como arma de defesa, instrumentos que não o eram, na persuasão de iludir o adversário quando, na verdade, procuravam iludir-se a si mesmos”, denuncia o coronel Herculano no manifesto, intitulado “As razões da minha atitude”


No dia 1º de outubro de 1932, o governo dito constitucionalista de São Paulo foi deposto pelo comandante da própria Força Pública estadual, coronel Herculano de Carvalho, que assinara dias antes, com o governo federal, o pacto que pôs fim à guerra civil.

A oligarquia paulista, que havia ensangüentado o país lançando milhares de jovens na aventura revanchista, não opôs resistência ao ato do coronel, mas passou a qualificá-lo em seguida de “traição”.
C
om um longo manifesto, publicado na íntegra pelo jornal carioca “Correio da Manhã”, Herculano apresenta suas razões.

O relato seco e duro dos acontecimentos desfaz fantasias e mitos românticos através dos quais a oligarquia procurou encobrir a falta de compromisso com seus próprios soldados, sua irresponsabilidade e ambição sem limites.

Para conhecimento do leitor, publicamos aqui um condensado desse manifesto. 
Desde que as circunstâncias imperiosas me obrigaram a uma iniciativa de todos conhecida e, posteriormente, a assumir o governo militar de São Paulo, concertei comigo mesmo, tão logo me fosse dado vagar, dirigir-me ao nobre e altivo povo bandeirante, numa exposição simples e franca dos motivos que me levaram a ambos os fatos.

Quando a 8 de julho reunidos os comandantes de unidade da Força Pública no gabinete do meu antecessor, o então coronel Júlio Marcondes Salgado, por ele fomos oficialmente inteirados do movimento constitucionalista, a irromper no dia seguinte. Dos seus lábios ouvi que a Força Pública de São Paulo se limitava a manter a ordem, de prontidão nos quartéis e obediente ao Governo do Estado. Às unidades do Exército, aquarteladas no Estado, é que competia a ação, secundada por outras, em diversos pontos do País, principalmente no Rio Grande do Sul e em Minas Gerais, aliados de São Paulo na chamada Frente Única.

A despeito de tais declarações categóricas, ainda bem vivas na lembrança dos que as ouviram, dois dias depois tivemos ordens de deixar os quartéis e concentrar-nos em Mogi das Cruzes, já na expectativa de prosseguirmos viagem até defrontar o adversário.

Qual a minha atitude? Como paulista e brasileiro, eu não aprovava o movimento, uma vez ideado, no dizer de muitos dos meus camaradas, para repor, na posição de mando, velhos políticos profissionais. Como soldado, pus-me à frente de minha tropa e parti, cônscio de meu dever de militar. Nem a mais leve queixa me aflorou aos lábios, ao contrário do que sucedeu a vários companheiros, alguns imediatamente presos, por se recusarem a seguir, e outros que exteriorizaram seu protesto. Não obstante, estávamos em atitude de expectativa, quando surgiu uma nova concepção de plano, segundo a qual a vitória seria garantida sem um único disparo de fuzil: as tropas paulistas formariam alas à passagem das de Mato Grosso, vanguardeiras das guarnições do Rio Grande do Sul tinham o seu flanco esquerdo as de Mina Gerais; tratava-se, pois, de uma simples parada militar, mera marcha triunfal até o Rio de Janeiro.

Pura ilusão! Desde logo se nos apresentou a realidade de uma resistência armada das tropas federais, a barrar-nos, nas fronteiras do Estado, a passagem à Capital da República. Daí o novo plano: enquanto as hostes constitucionalistas permaneciam inativas, promovia-se a ida de emissários, para tratar, com amigos comuns, da renúncia do Governo Provisório, a fim de evitar-se grande derramamento de sangue. Foi, então, que me atiraram ao Túnel, naquele inferno que, dia a dia, menos se saciava de vidas preciosas, onde, entretanto, nunca me passou pela idéia rebelar-me contra situação diferente da que nos foi assegurada.

Ali permanecia no meu posto de honra, já identificado com o movimento de 9 de julho, quando o falecimento do general Marcondes Salgado foi colher-me, entre pesaroso e surpreso, para assumir o comando da Força Pública. 

MUNIÇÃO 


Mais ou menos em fins de julho, o ex-secretário da Fazenda, em carta que me dirigia e em repetidas palestras em palácio, comunicava-me estar em entendimento com firmas estrangeiras, a fim de adquirir o indispensável armamento para vencermos a guerra.

Por que não se adquiriu de pronto esse armamento e essa munição, quando as fronteiras do sul do Estado e o nosso principal porto ainda nos estavam franqueados? Dizem que na esperança de mais dia, menos dia, acudirem em nosso auxilio, bem armados e municiados, os nossos irmãos do Rio Grande do Sul e Minas Gerais.

Nesse passo, justamente, é que se fez sentir, contrária à verdade dos fatos, a ação da imprensa e do rádio. Os nossos jornais, quase todos, no louvável intuito de animar a população e, principalmente, os que se encontravam no campo da luta, davam crédito ao que se lhes insinuava ou fantasiava, de fonte oficial ou meramente informativa, quem sabe até de origem tendenciosa.

Como se criavam tais fantasias? – Ignoro. O que é certo, no entanto, é que nossos diários davam curso às mais animadoras notícias, lidas e comentadas com grande eloqüência nos microfones dos rádios, e sofregamente, absorvidas por todos quantos ansiavam pelo término da luta com a nossa vitória final.

Não me furto, numa última análise [sobre a questão da munição], a este fator preponderante do nosso desastre militar, a um fato que se verificava no setor norte.

Por falta de munição, que insignificante era a quantidade produzida por nossas fábricas, imaginaram os soldados constitucionalistas algo que a substituísse, ainda que na aparência: mandaram construir, nas oficinas da Rede Sul-Mineira, em Cruzeiro, uma espécie de matraca. Sacudida com pulso vigoroso, dava a impressão de tiros de fuzis e metralhadoras.

Comoveu-me a narração do fato. Espantou-me o heroísmo nunca visto, sem exemplo na história dos povos. E, voltado a mim do espanto e da comoção, fui presa de um sentimento de revolta, de incontida indignação. Aquilo já não era humano. Já não era desprendimento: raiava pela loucura.

Um crime continuar-se a luta daquele modo. Um crime permitir-se que aqueles moços se expusessem às balas adversárias, aos shrapnels, às granadas, ao metralhar dos aviões, e tivessem como arma de defesa, instrumentos que não o eram, na persuasão de iludir o adversário quando, na verdade, procuravam iludir-se a si mesmos.

Noticiavam os jornais levantes no sul e em Minas. Tão grande lhes era o alcance que, em se tornando conhecidos, já estaria terminada a guerra com a vitória da nossa causa.

Da marcha dos acontecimentos militares, desde a retirada de Itararé, de Faxina, de Buri, à linha do Paranapanema, e da impossibilidade militar de sustentar-se a linha defensiva, da frente mineira, em virtude da diminuta guarnição, era informado o Governo do Estado e o próprio general Klinger. Certifiquei-me, minuciosamente, da exata situação da frente leste que, rompida pelo adversário – o que era fácil – havia de trazer fatalmente o fracasso das operações, pois de nada valeria manter-se com firmeza as frentes norte e sul.

Todos os cuidados do nosso Estado Maior se voltavam para Eleutério, mas, à falta de munição e recursos de homens armados, provocaram a sua queda, aliás prognosticada, em tempo, ao Governo do Estado, que não lhe dava crédito. 

URGÊNCIA  


Foi, então, que a 25 de setembro, recebi a seguinte carta do subchefe da Força Pública, tenente-coronel Euclides Machado, oficial dos mais acatados e ponderados: 

“Prezado amigo e senhor comandante Herculano de Carvalho e Silva.

É esta para comunicar-lhe que acabo de vir da residência do Sr. Dr. Plínio Barreto, onde fui ter espontaneamente, e com quem conferenciei sobre a possibilidade de um entendimento com o Governo Provisório para a cessação da luta, sem que disso resultasse qualquer deslustre para a honra de São Paulo...”. 

No dia seguinte, alta hora da madrugada, recebi um telegrama de São Paulo, em que me comunicavam que o valoroso oficial do Exército Brasileiro, coronel Alexandrino Gaia, do setor norte, com insistência, me pedia que fosse a São Paulo e lhe marcasse hora para nos encontrarmos. Assunto urgente. Pedi-lhe que viesse a Campinas, porquanto não era possível abandonar, ainda que por horas, o meu posto de comando.

Efetivamente o coronel Alexandrino Gaia ali comparecia a 27, como representante de vários comandantes de unidades do Exército e expunha a razão de sua viagem, consubstanciada na ata aqui transcrita: 

“Aos vinte e sete dias do mês de setembro de mil novecentos e trinta e dois, às nove e meia horas, numa das salas do P.C. de Destacamento em Campinas, situados no prédio do ex-Campinas Hotel, convocados pelo coronel Herculano de Carvalho e Silva, comandante geral da Força Pública do Estado, compareceram os seguintes oficiais: coronéis Herculano de Carvalho e Silva, Eduardo Lejeune e Alexandre Gama, tenentes-coronéis Alexandrino Gaia, Patrício Batista da Luz, Luís de Faria e Sousa, Virgílio Ribeiro dos Santos, Romão Gomes e Macário Rangel e Major José da Silva.

O coronel Herculano de Carvalho e Silva, fazendo uso da palavra, apresentou o valoroso oficial do Exército Brasileiro, comandante de um dos setores do Vale do Paraíba, para expor a situação militar daquela frente e a sua projeção sobre os demais setores da luta. O referido oficial demonstrou à evidência que vários fatores de ordem moral e material tornavam insustentável a manutenção das posições e a continuação da guerra no vale do Paraíba, sendo inevitável o recuo progressivo dos elementos que ali combatem, desde o início das hostilidades. Assim pensavam todos os oficiais que com ele cooperam, do Exército e da Força Pública, unânimes em reconhecer o sacrifício imenso a que seriam expostos os habitantes das cidades e vilas sujeitas aos horrores da luta. 

SITUAÇÃO 


Assim inteirados da exata situação daquele setor, fizeram uso da palavra diversos comandantes, acordando todos, sem uma única exceção, que o que se passava no vale do Paraíba não era um fenômeno local e sim geral, pois nos demais setores a contingência era a mesma, resolvendo que, diante da impossibilidade da vitória pelas armas era um dever patriótico cessar imediatamente a luta para evitar novos e pesados sacrifícios ao Estado e ao País, deliberando: 1º) Ficava o coronel Herculano de Carvalho e Silva, apoiado pelas forças do Exército e da Força Pública, indicado para entrar em entendimento imediato com as autoridades militares e civis, estaduais e federais, para a cessação da luta. 2º) No caso de encontrar resistência por parte de qualquer desses elementos, ficava igualmente autorizado a agir como supremo representante das Forças Armadas, concertando com o adversário o acordo almejado. 3º) Que lhe fossem cientificados dessa deliberação os camaradas do setor sul. 4º) Que as providencias necessárias para o início das negociações tivessem execução imediata”.

Como não havia tempo a perder, de Campinas, rumei para Guaratinguetá, em companhia do coronel Alexandrino Gaia, onde procurei o coronel Euclides de Figueiredo, a quem expus a razão da minha visita.

Mostrou-se ele bastante surpreso, ante o que se lhe revelara e, de princípio, negou o seu apoio. Pouco depois, por sugestão do coronel Palimércio de Resende, seu chefe do E.M., concordou que se convocasse uma reunião de todos os chefes militares e membros do Governo, a fim de que este ficasse perfeitamente inteirado da verdadeira situação militar.

Para isso desejava ouvir a opinião do general Klinger. No dia seguinte, alta hora da madrugada, é procurado pelo coronel Alexandrino Gaia com o convite de seguir para Guaratinguetá, e lá resolver-se a proposta do coronel Palimércio de Resende. 

ARMISTÍCIO


Atendido pelo coronel Vilabela, o coronel Gaia expôs-lhe a razão de sua visita àquela hora. O chefe supremo das tropas constitucionalistas ao invés de atender ao convite, no dia seguinte, deliberadamente tomou a iniciativa de promover o armistício.

Tido e havido pelo Governo do Estado como principal causador de tudo, pensaram alguns dos seus membros em remediar o mal, alijando-me do comando do Destacamento de Campinas.

Cuidaram logo de substituir-me pelo tenente-coronel Romão Gomes, oficial dos mais competentes para a espinhosa missão.

Para isso, preliminarmente, efetivaram-no no posto de tenente-coronel que estava comissionado e, por portaria especial, à completa revelia do comando-chefe das Forças Constitucionalistas e da Força Pública, deram-lhe o comando daquele destacamento. Para que não se recusasse, uma comissão foi procurá-lo em Campinas e entregar-lhe, de mão própria, o documento de nomeação. Quanto a mim, ao que me informaram, estava reservada a mais negra das sortes: preso por traidor. Serenamente aguardei o desenrolar dos acontecimentos. No dia seguinte, o comandante Romão Gomes, compareceu a Palácio para declinar o convite, mesmo porque, na sua própria expressão, várias vezes repetida, impossível se tornava continuar a luta.

Precisamente a uma hora do dia 29 de setembro, o general Klinger transmitiu o seguinte rádio ao chefe do Governo Provisório.

“Dr. Getúlio Vargas – Rio 
- Com o fito de não causar à Nação mais sacrifícios de vida, nem mais danos materiais, o comandante das Forças Constitucionalistas propõe imediata suspensão das hostilidades em todas as frentes, a fim de serem assentadas as medidas para a cessação da luta armada. (a) General Klinger”. 

Concomitantemente, tratava-se de um acordo com o adversário. A iniciativa, como é natural, partira do general Klinger, que mandara dois emissários a Cruzeiro – o seu chefe do E.M., tenente-coronel Osvaldo Vilabela, e o major Ivo Borges, chefe das Unidades Aéreas.

Duras, porém, foram as condições impostas, tanto que, no dia seguinte, novamente os emissários tornavam a Cruzeiro, com uma contraproposta do chefe constitucionalista. 

ENTENDIMENTO 


Por essa ocasião, solicitei ao general Klinger fosse permitido à nossa milícia tomar parte no entendimento com o adversário, no que SS. consentiu.
Lá chegados, os quatro emissários – dois da Região, tenente-coronel Osvaldo Vilabela e tenente Correia Velho e tenentes-coronéis Otaviano Gonçalves da Silveira e Euclides M. Machado – o próprio general Góis Monteiro separou-os e com eles tratou separadamente do acordo, sem que as condições propostas a uns fossem conhecidas dos outros.

Apresentadas as bases aos nossos emissários, depois da demorada discussão, manifestam eles desejo de vir a São Paulo, para consulta, o que não lhes foi permitido, sob alegação de que já se haviam perdido 48 horas, em prazo concedido ao tenente-coronel Vilabela, para idêntico fim.
À vista disso, e como urgia pôr-se cobro à luta, prestes a reiniciar-se, para evitar a todo o transe o adversário entrasse pelas armas em São Paulo, para conter a avalanche dos nossos próprios soldados, que se desgarravam das frentes, tiroteando a êsmo pelas estradas e pelas estações, insub-missos e opondo-se, tenazmente, à continuação das operações; enfim, como estivesse virtualmente fracassada essa segunda tentativa de acordo, proposta pelo general Klinger, resolveram os dois emissários da Força Pública assinar o pacto discutido e assente, e já do domínio público.

CORONEL HERCULANO DE CARVALHO

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