domingo, 26 de agosto de 2012

O sono do descaso: o STF e as vicissitudes da Ação Penal 470

O jurista Marcos Lima Filho, em artigo para o HP, que publicamos nesta página, analisa a chamada Ação Penal 470 e sua torturada tramitação no Supremo Tribunal Federal.
Aproveitando a oportunidade, algumas considerações - pelas quais o jurista não é, de modo algum, responsável.

A Ação Penal 470 parece destinada a fazer história pelos desatinos cometidos.

Pedro Lessa, primeiro negro a ser ministro do STF (sim, Joaquim Barbosa não foi o primeiro - nem o segundo, que foi Hermenegildo Rodrigues de Barros), advertiu contra "as ambições, os interesses e as vinditas políticas" como elementos deformadores das decisões e do próprio Supremo. É dele, fundador da doutrina brasileira sobre o habeas corpus, também a afirmação de que "as garantias constitucionais são estabelecidas em favor da liberdade e outros direitos dos indivíduos e não contra estes" (cf. Carlos Bastide Horbach, "Memória jurisprudencial: Ministro Pedro Lessa", STF, Brasília, 2007, pág. 80).

Ou, ainda o mesmo Pedro Lessa, em um dos seus votos mais famosos no STF:

"Grave erro é, segundo me parece, supor que vivemos em Roma, sob a jurisdição dos pretores, que tinham a faculdade por ninguém contestada de auxiliar, de suprir, de corrigir o direito civil. (…) Outro engano é acreditar que a evolução do direito possa religar-se contrariando as disposições de direito público, do próprio direito constitucional, e sem nenhuma necessidade, por estar disposto na lei e assentado pela doutrina o que convém em determinada hipótese. Não se compreende uma evolução do direito por meio da violação de normas do direito público. Seria uma evolução a trancos e barrancos, dando por paus e por pedras, o que é a negação da ideia de evolução" (op. cit., pág. 107).

No julgamento atual do suposto "mensalão", onde até esta última palavra é invenção de um escroque, a impressão que se tem é que o Direito – ou sua aplicação – regrediu muito em relação aos tempos da República Velha.

No texto de Marcos Lima Filho, o leitor poderá ter acesso a um resumo: o que aponta o jurista é a transformação da perseguição política – e, o que é pior, tangida pela mais repugnante mídia que já existiu no país – em norma de julgamento.

Diga-se de passagem, nem as formas habituais de pudor jurídico (geralmente a última folha de parreira a encobrir a injustiça) têm sido respeitadas.

Naturalmente, não nos referimos ao conjunto dos ministros do STF, que ainda se manifestarão sobre o mérito, mas à condução vista até agora, onde parece valer qualquer coisa, sobretudo apresentar como provado o que, em absoluto, não foi provado.

C.L.

MARCOS LIMA FILHO*

Uma das imagens que marcaram o julgamento da Ação Penal 470, denominada midiaticamente de "mensalão" (que não era mensal, pois a acusação é de pagamento feito a cada votação do Congresso Nacional), foi o cochilo de alguns ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) durante as argumentações das defesas dos réus. Tal imagem simboliza de modo bem eloquente o empenho que o Poder Judiciário nunca demonstrou para julgar algum político. O sono dos ministros, ante a fala da defesa, demonstra que a decisão já foi tomada, pelo menos por alguns e espera-se apenas o fim da encenação para prolatar-se o voto.

Baseado nessa pressa anormal do Supremo, pretende-se discutir neste pequeno texto por que partidos ou pessoas que adotam ideologias de esquerda são tratadas de modo diferente pelo Poder Judiciário? Antes, vejamos os fatos que embasam nosso questionamento.

Primeiro, um dado interessante, retirado de pesquisa realizada pela Associação de Magistrados Brasileiros (AMB), aponta que, desde 1998, apenas 4,6% das ações penais abertas no STF foram julgadas. Diante desse número, fica a pergunta: não é de se estranhar que um processo penal com 38 réus - antes eram 40 - em que o próprio procurador admite haver poucas provas robustas, com mais de 600 testemunhas e 50 mil páginas, seja julgado tão celeremente, sendo realizadas inclusive sessões de trabalho extras a fim de concluir logo o julgamento? Para se ter uma ideia da agilidade (em termos de Judiciário brasileiro), Roberto Jefferson fez suas acusações em 2005 sobre fatos ocorridos desde 2003. Ocorre que denúncias semelhantes foram veiculadas, envolvendo menor número de acusados, beneficiando políticos do PSDB mineiro, porém, em 1998. Se este caso é anterior e envolve bem menos acusados, então por que até agora não foi julgado?

Continuemos nossa inquirição.

Outro fato que aponta o empenho voraz dos Ministros para julgarem o Partido dos Trabalhadores é a informação, contida no sítio eletrônico do próprio Supremo Tribunal Federal (STF), que transcrevo aqui: "Em iniciativa inédita, as então 14 mil páginas do inquérito começam a ser digitalizadas para dar mais celeridade ao processo. No dia 26, termina a digitalização do inquérito, já com 40 mil páginas.". Perceba, leitor, que quem fala em acelerar o julgamento é o próprio STF e não o colunista.

Terceiro, e talvez o mais estranho dos fatos, é o tratamento diferente dado pelo STF à mesma questão: o desmembramento do julgamento dos réus sem foro privilegiado, conforme denúncia realizada pelo colunista Jânio de Freitas. No julgamento das acusações contra os tucanos de Minas Gerais, o STF ficou de julgar dois réus com "foro privilegiado", por serem parlamentares, e remeteu à Justiça Estadual mineira o julgamento dos outros 13. Se fosse coerente, faria o mesmo no julgamento das acusações contra os petistas: julgaria os três parlamentares com direito ao foro privilegiado e remeteria os demais processos para as instâncias primárias. Mas não o fez e ainda contou com o chilique de Joaquim Barbosa, quando o ministro Ricardo Lewandowski quis discutir a questão.

Quais as implicações dessa decisão diferenciada para PSDB e PT? O fato dessa atração de todos no mesmo julgamento privar os réus comuns de dois direitos fundamentais: o de ser julgado por seu juiz natural e o de poder recorrer das decisões, ou seja, a garantia do chamado "duplo grau de jurisdição". Além disso, se todos os réus não detentores de prerrogativa de foro fossem julgados em primeiro grau, isso atrasaria o andamento do feito, bem como obteria a possibilidade de que todos, sendo condenados em primeiro grau, pudessem recorrer à segunda instância e, eventualmente, ao STJ e ao próprio STF.

Casualmente, o atraso poderia conduzir à prescrição. O PSDB poderá contar com isso, o PT não.

Quarto, o fatiamento do julgamento dos Ministros de acordo com os crimes elencados pela acusação. Ora, isso nunca foi feito antes. O regimento interno do STF manda que o relator vote por inteiro, em seguida, o revisor e depois os demais membros.

Por que então inovar e ainda passar por cima do regimento do Tribunal? Mais, se isso é contrário à lei e traz prejuízos a uma das partes, por que insistir? Por que fatiar em núcleos, presumindo que os crimes existiram antes de serem julgados, se essa mesma Corte foi contra o desmembramento do julgamento dos réus? Para que correr o risco de ver esse julgamento ir para Corte Internacional, em razão de cerceamento de defesa, uma vez que o referido fatiamento impede recurso e fere o dogma do devido processo legal? Com que objetivo jogar-se-á a individualização das condutas de cada réu no lixo e abrir-se-á precedente jurisprudencial para se julgar crimes sem pessoas específicas, mesmo sendo isso contrário às leis?

Há mais um fato intrigante nisso tudo. Apesar de dizer que realiza o julgamento conforme a metodologia da acusação, o Ministro Joaquim Barbosa alterou a ordem de apresentação desses capítulos sem explicar o critério utilizado para tanto. Assim ele denuncia primeiro quem ele quiser.

A resposta para essas aberrações jurídicas a fim de apressar o julgamento pode está na iminente aposentadoria compulsória do Ministro César Peluso, marcada para o início de setembro. Tido como voto certo pela condenação dos réus, o referido julgador não poderia participar da fase decisória, caso o processo seguisse o rito normal, com base na lei. Ora, seria inaceitável para a grande imprensa, que exige a condenação a qualquer custo, a perda de um voto certo, afinal mesmo que o julgamento fira todas as regras de direito, o importante é condenar o inimigo.

Essa parece ser a explicação mais plausível para todas essas "anormalidades". Triste, pois o STF deveria pugnar por um julgamento justo, com base nas leis e não aceitar imposição midiática ou de qualquer setor do grande capital que queira ditar-lhes a conduta.

Foi ventilado na mídia que diante de tantos veículos de comunicação do Brasil e do exterior, a maioria dos ministros não permitiria o esvaziamento da ação em Brasília em proveito midiático da Justiça estadual. Penso que isso pesa, mas não é o mais relevante.

Esse tratamento diferenciado do Poder Judiciário está sendo com o PT, mas poderia ser com o PC do B, o PPL ou a Consulta Popular, qualquer partido ou indivíduo que pense em transformação social para melhoria das condições de vida da maior parte da população. O entusiasmo dos empresários da comunicação, especialmente a Globo e a Abril (Veja) conta como uma fonte de pressão forte para que o Tribunal puna os inimigos políticos deles. Porém, as razões desse tratamento vão além. Qualquer partido ou indivíduo de esquerda terá de enfrentar, no Poder Judiciário, uma ideologia de classe que não esconde seu medo de mudanças e do que pode ocorrer com o status social que tal política poderia acarretar, mesmo que seja apenas na fantasia, uma vez que o PT está longe de ter condições de realizar mudanças profundas na realidade social brasileira. Enfim, o que se quer aqui é desmascarar que por trás do discurso de combate à corrupção e da Justiça está uma pública e notória perseguição a inimigos políticos.

* Doutorando em Ciências Jurídicas pelo PPGCJ da UFPB

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