sexta-feira, 31 de agosto de 2012

As lendas da competitividade e a incrível indústria automotiva

A política econômica não é uma força cega da natureza, mas uma escolha dos governantes
CARLOS LOPES
A mídia neoliberal é uma fábrica de falsos consensos. Talvez seja a única indústria que o neoliberalismo desenvolveu. Assim, de repente, aparece um coro sobre a suposta "falta de competitividade" da economia brasileira – e, especialmente, da indústria nacional.
Independente das intenções dos membros desse coro – nem todos são mal intencionados – é evidente o seu efeito sobre o público: passar a ideia de que a indústria nacional é ineficiente. Assim, os problemas atuais que ela enfrenta não seriam os juros, a taxa de câmbio, o desvio dos financiamentos do BNDES para as multinacionais, a falta de prioridade nas encomendas do governo, e outros - todos eles problemas de política econômica, portanto, problemas de governo.
Pelo contrário, dizem os neo-corifeus, o problema é a indústria nacional, que "não é competitiva". Logo, a solução é desnacionalizar mais ainda o país – de preferência, acabar com essa pretensão de ter uma indústria nacional.
Por ser óbvia, não precisamos gastar espaço e tinta com a questão de que nenhuma indústria pode ser competitiva se a política do seu próprio governo está contra ela. Portanto, abordaremos o outro lado do problema, o da suposta ineficiência autóctone (deve ser um problema racial, como alguns já aventaram...), que é reforçado por um coro subsidiário, supostamente pela "inovação".
Naturalmente, ninguém pode ser contra as inovações. O que não é verdadeiro é atirar sobre a indústria nacional a pecha da "falta de inovações", e não somente porque qualquer inovação depende do estado da arte da produção – e não de utópicas incubadoras, que, quando têm algum sucesso, são logo adquiridas por quem tem mais dinheiro, isto é, por algum monopólio multinacional.
Mais importante ainda, não é devido a inovações estrangeiras que o país vem sendo ocupado por empresas externas, mas porque estas têm maior poder financeiro que as empresas nacionais – e essas últimas não estão, ainda, contando com o Estado (o Estado do país de que fazem parte) para contrabalançar esse maior poder financeiro das multinacionais.
Do ponto de vista mais geral – ou seja, exceto problemas setoriais - é ridículo falar que o problema da indústria nacional é a ineficiência, quando qualquer empresário, se pensar um pouco, concordará com a observação do presidente da Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos (ABIMAQ), Luiz Aubert Neto:
"No que se refere à Política Industrial (…), o atual modelo econômico nos empurra para uma primarização da economia. (…) Para se ter uma ideia, desde o século XIX o Brasil é o maior produtor mundial e exportador de grãos de café, mas o maior exportador de café industrializado [hoje] é a Alemanha, que não possui um único pé de café. Cerca de 75% da soja produzida no País é destinada ao mercado externo, enquanto as exportações de derivados de soja, que possuem maior valor agregado, cai ano a ano. Cerca de 90% da produção de celulose é destinada às exportações, porém mais de 50% do papel consumido no Brasil é importado. Somos um dos maiores produtores de algodão do mundo, mas a balança comercial de tecidos já experimenta um déficit significativo" (Aubert Neto, "Brasil: potência ou colônia?", Anuário Abimaq 2010-2011, págs. 4 e seguintes).
Que inovação extraordinária os alemães fizeram na indústria do café, para conquistarem esse primeiro lugar na exportação do produto industrializado?
Nenhuma.
Quanto às máquinas e equipamentos, a situação, além de perigosa, é elucidativa:
"O consumo aparente (máquinas que são consumidas no Brasil) era composto, em 2005, por 60% de máquinas nacionais e 40% de máquinas importadas. Em 2010, essa conta se inverteu, sendo que 60% do consumo foi de máquinas importadas, contra apenas 40% de máquinas nacionais. Será que isso não é desindustrialização?" (Luiz Aubert Neto, "Desindustrialização.
Os números não mentem", ABIMAQ, jan/2011).
Atualmente, a situação é, ao que tudo indica, ainda pior:
"O consumo aparente, que representa o consumo total de máquinas e equipamentos no mercado nacional, fechou o acumulado de 2012 em R$ 26,0 bilhões, resultado 8,4% superior ao do primeiro trimestre do ano imediatamente anterior, sendo que os importados representaram 58% desse valor, seguido do mercado interno (28%) e da revenda e incorporação à produção de bens de capital importados (14%), o que evidencia a forte participação dos produtos importados no mercado doméstico" (Informaq, nº 155, maio/2012).
Evidentemente, não são dados de participação no mercado, como os anteriores, e sim de variação no consumo de máquinas. Mas é escandaloso que 72% do aumento desse consumo tenha sido ocupado por importações – ou diretamente (58%) ou através "da revenda e incorporação à produção de bens de capital importados" (14%). Quanto aos 28% do aumento de consumo que foram atendidos pela produção interna, isso inclui, evidentemente, a montagem das multinacionais a partir de componentes importados, apesar de 70% das empresas fabricantes de máquinas e equipamentos, segundo a ABIMAQ, ser de capital nacional.
Porém, voltemos à nossa questão: que revolução tecnológica houve nas empresas externas, entre 2005 e 2012, para que a situação no mercado interno do nosso país mudasse tão radicalmente?
Nenhuma.
O que houve foi um dumping cambial, como consequência principalmente dos juros altos, a favor das empresas estrangeiras e das importações.
INTRODUÇÃO
Essas considerações, e as seguintes, foram escritas, primeiramente, para esclarecimento do próprio autor. Uma parte, referente ao aumento de importações no setor automobilístico, foi parcialmente aproveitada em edição anterior (v. HP 03/08/2012).
No entanto, naquela oportunidade, não usamos o relatório da KPMG International (Global Automotive Executive Survey 2011) que citamos neste texto como subsídio para o entendimento do problema. Além disso, em relação aos dados apresentados, fizemos algumas modificações, nenhuma delas implicando em erro ou correção, mas em mudança de critério para torná-los mais rigorosos: por exemplo, apresentamos, na matéria mencionada, números referentes ao licenciamento de veículos novos importados – o que é uma medida, usada pela ANFAVEA, da ocupação do mercado interno pelas importações; agora, na tabela 1, o leitor poderá conferir os dados sobre a importação total de veículos (não apenas os que foram licenciados), sua evolução percentual (sempre em relação a 2005) e a percentagem de importados em relação aos veículos montados internamente – o que expõe mais precisamente a tendência das multinacionais, pois é uma referência não apenas da ocupação do mercado interno, mas também dos estoques de veículos importados.

Tentamos escoimar o texto dos excessos e adiposidades que são características de escritos para si mesmo. É pouco provável que tenhamos atingido 100% de sucesso. Evidentemente, como todo texto que não foi escrito originalmente para publicação, sua estrutura – isto é, a distribuição em temas e subtemas - não é completamente rigorosa. Compensamos o problema, acreditamos, pelo rigor nos fatos e números. Como o leitor poderá sentir, o texto termina abruptamente – pois a continuação necessita de mais alguns estudos e esforços para torná-la mais clara.
PIB E CADEIA
Depois de duas décadas de afundamento, em que o crescimento médio do Produto Interno Bruto (PIB) - que fora de +6,2% (1961-1970) e +8,6% (1971-1980) – caiu para +1,6% (1981-1990) e +2,5% (1991-2000), o Brasil, devido à política econômica do segundo governo Lula, começou outra vez a crescer vigorosamente, atingindo +3,6% entre 2001 e 2010 (e +4,6%, se considerarmos o segundo mandato do presidente Lula; nos oito anos do governo de Lula, de 2003 a 2010, a média do crescimento real foi +4%, praticamente o dobro dos 2,3% do governo Fernando Henrique – cf. IBGE, Sistema de Contas Nacionais, PIB - variação real anual, 1901-2011).
Reparemos que, ainda que não honrando totalmente a dívida social e econômica dos anos anteriores, os +3,61% de crescimento da última década são três vezes a taxa de crescimento populacional do Brasil (+1,21%) no mesmo período (cf. para todos esses dados: BC, Indicadores Econômicos Consolidados, FGV/IBGE, "Produto Interno Bruto, tab. IE-1-51").
Infelizmente, em 2011 e 2012, voltamos ao pântano. No entanto, a política econômica não é uma força cega da natureza, mas uma escolha dos governantes – a economia continua a ser uma associação entre seres humanos que estabelecem certas relações para produzir, portanto, não somente acessível à consciência dos seres humanos, mas, sujeita aos seus atos.
No entanto, há quem trate encenações ou montagens ideológicas como fatos e verdades – tão indiscutíveis que não há necessidade de pensar sobre elas. Vejamos, pois, algumas dessas mentiras e lendas (pois o que é mentira do sujeito de má-fé, torna-se lenda para o incauto).
O leitor, certamente, já ouviu alguma autoridade dizer – ou leu que alguma disse - que é fundamental conceder privilégios à indústria automotiva "porque ela é 20% do PIB". Desde 2008, deve ser uma das expressões, na justificativa de medidas econômicas, mais repetidas, especialmente desde janeiro de 2011, com uma variante: "a cadeia da indústria automotiva é 20% [em outras versões, ‘23%’] do PIB".
Realmente, é preciso uma razão muito boa para conceder isenções ou financiamentos do BNDES às multinacionais da indústria automotiva. Não somente pelos sobrepreços que cobram e sempre cobraram pelos veículos que montam aqui – a margem de lucro das montadoras no Brasil é o triplo daquela que obtêm nos EUA. Não somente porque a justificativa para que se instalassem aqui, ao invés de desenvolvermos uma indústria própria no setor - o que, como dizia Kurt Mirow, muito antes da Coreia do Sul e da China desenvolverem as suas, não é mistério – foram supostos investimentos que elas trariam de fora. E, por fim, não somente porque elas, há muito tempo, são vorazes importadoras de autopeças e outros materiais para a montagem, assim como ferozes remetedoras de lucros.
Além de tudo isso, há uma questão candente no momento atual: o "excesso de capacidade" ("overcapacity") na indústria automobilística dos EUA, Japão e Alemanha, isto é, a brutal capacidade ociosa nas fábricas das multinacionais desses três países, em especial nos EUA (cf. a pesquisa da KPMG International, Global Automotive Executive Survey 2011).
Evidentemente, a solução encontrada pelas multinacionais para esse problema é fazer suas filiais importarem veículos prontos e diminuir a montagem em outros países. Logo, os privilégios estão servindo para aumentar importações e fomentar o desemprego – como se viu no recente caso da GM de São José dos Campos.
[
UMA NOTA: a pesquisa da KPMG International cita explicitamente quatro países - China, Índia, Rússia e Brasil - onde não há "excesso de capacidade" atualmente, pelo menos não no mesmo nível dos EUA, Alemanha e Japão. A diferença do Brasil em relação à China, Índia, e, inclusive, Rússia, é que nós não temos uma indústria nacional de veículos.]
PARTICIPAÇÃO
Se fosse verdade que o setor automotivo, ou sua cadeia produtiva, chegasse a 20% ou mais do PIB, não seria razão para conceder privilégios, mas para tomar providências urgentes que mudassem rapidamente a situação, estimulando o crescimento rápido de outros setores produtivos – pois, ter 1/5 ou mais da economia pendurados em cinco multinacionais, com alguns coadjuvantes, é um caminho certo para a infelicidade.
Supõe-se que, por "cadeia da indústria automotiva", esteja-se designando as montadoras multinacionais do setor e seus fornecedores – sobretudo a indústria de autopeças e algumas outras. Mais que isso, seria um abuso falar em "cadeia produtiva do setor automotivo", até porque não haveria limites para estendê-la ao gosto do falsário, talvez até a 100% da economia...
O interessante é que nem as montadoras multinacionais – isto é, a ANFAVEA - sustentam esse número de "20% ou 23%" do PIB. De 1996 a 2011, segundo elas mesmas, sua participação no PIB industrial (não no PIB total) vai de um mínimo de 8,7% (1990) a um máximo de 18,5% (2010).
Os mesmos números, quanto ao PIB total (e não apenas ao PIB industrial), significam apenas 6,8% (1990) e 5% (2010).
Essa diferença quase espetacular, em 2010, entre a participação no PIB industrial (18,5%) e a participação no PIB total (5%), é devida à redução do peso da indústria no PIB total (para todos esses dados, cf. ANFAVEA, "Anuário da Indústria Automobilística Brasileira 2012", São Paulo, 2012, pág. 38; e, também, BCB Boletim/Ativ. Ec., "PIB/câmbio médio/US$").
Para finalizar esta parte, reparemos, ainda, que esse resultado só é conseguido quando somamos o valor da produção de autoveículos à de "máquinas agrícolas automotrizes" (fundamentalmente, tratores e colheitadeiras). Caso contrário, a participação no PIB seria ainda menor.
PIA/IBGE
Entretanto, mesmo que nem os beneficiados pela (supostamente) peremptória afirmação de que a indústria automotiva "é 20% do PIB" a sustentem, vamos dar o benefício da dúvida aos seus proclamadores.
Vejamos o que se pode concluir dos números divulgados pelo IBGE, que têm a vantagem de incluírem toda a cadeia da indústria automotiva, talvez até excedendo um pouco o escopo.
Se consultarmos a última Pesquisa Industrial Anual (PIA) publicada pelo IBGE – a de 2010 -, nela, o setor de "fabricação de veículos automotores, reboques e carrocerias" contribuiu, naquele ano, com 9,9% do valor adicionado pela indústria, abaixo da "fabricação de produtos alimentícios" (12,1%) e da "fabricação de coque, derivados do petróleo e biocombustíveis" (11,3%).
Somente para maior clareza, duas questões - primeira: o PIB, do ponto de vista da produção, é justamente a soma do valor adicionado pelos vários setores da economia.Segunda: no setor "fabricação de veículos automotores, reboques e carrocerias", o IBGE inclui cinco subsetores: 1) "fabricação de automóveis, camionetas e utilitários"; 2) "fabricação de caminhões e ônibus"; 3) "fabricação de carrocerias e reboques"; 4) "fabricação de peças e acessórios para veículos automotores";
5) "recondicionamento e recuperação de motores para veículos automotores" (para os dados acima, cf. IBGE, PIA-Empresa 2010, v. 29, nº 1, págs. 31 e segs.).
Como o setor é até mais vasto que a cadeia, propriamente dita, da indústria automotiva (inclui não apenas a indústria de autopeças, mas os fabricantes nacionais de carrocerias e até as empresas que recondicionam motores), podemos separar esses subsetores, a partir de outros dados - e atualizar a conta até 2011.
Assim, quanto ao PIB em geral, considerando que em 2011 o faturamento líquido das montadoras foi US$ 93,543 bilhões e o PIB em dólar do país, segundo o Banco Mundial, foi US$ 2.476.652.189.879,72, as vendas dessas multinacionais não passaram de 3,78% do PIB (cf. ANFAVEA, idem, ibidem; The World Bank, "World DataBank, GDP current US$").
Quanto à indústria de autopeças, com um faturamento, em 2011, de US$ 54,657 bilhões, suas vendas equivaleram a 2,21% do PIB (cf. Sindipeças/Abipeças, "Desempenho do setor de autopeças – 1981/2011", abril/2012, pág. 7).
Portanto, mesmo se somarmos as vendas das montadoras com as vendas da indústria de autopeças – o que, do ponto de vista do PIB, é incorreto, pois a maior parte das vendas das últimas é para as primeiras, portanto, uma parte do valor adicionado nas autopeças está sendo contado duas vezes – encontraremos o equivalente a 5,98% do PIB total.
EMPREGO
Mas, pode-se argumentar – e, com efeito, argumenta-se – que os privilégios às montadoras são justos, ou justificáveis, porque mantêm o emprego. Portanto, tenta-se incutir que as montadoras multinacionais são de uma importância decisiva para o emprego dentro do país, um tremendo manancial de emprego para os trabalhadores brasileiros.
Mas não é verdade. Para as pessoas que não lidam habitualmente com o problema, é quase inacreditável como é baixo o número de empregos nas montadoras multinacionais: 98 mil ao todo, em 2010 (cf. IBGE, PIA-Empresa 2010, pág. 36).
Nesta cadeia, somente a indústria de autopeças, que empregava 323 mil pessoas em 2010, tem contribuição significativa para o emprego (3,8% dos empregos industriais do país), embora esse número do IBGE mereça alguma atenção, pois o Sindipeças/Abipeças registra, para o mesmo ano, 146 mil e 400 trabalhadores "mensalistas", além de 78 mil e 200 "horistas" - ao todo, 224 mil e 600 empregados. A diferença, provavelmente, está na amplitude da pesquisa: enquanto o Sindipeças/Abipeças tem como base as cerca de 500 empresas que lhes são associadas, o IBGE registra 2.504 empresas no subsetor de "fabricação de peças e acessórios para veículos automotores" (cf. PIA 2010, pág. 36).
Entretanto, a indústria de autopeças, desde o governo tucano, não somente foi varrida por intensa desnacionalização (v. tabela 3), como, por consequência, é uma das áreas mais afetadas pelas importações, que, este ano, já atingiram, até junho, US$ 8,03 bilhões – com a consequência de que o subsetor está demitindo mais que as montadoras.
MAIORES
Correndo o risco de encher a paciência do leitor, poderíamos, por exercício, tentar outras formas de calcular, aproximadamente, a participação do setor automotivo no PIB.
Nós tentamos uma porção delas – e não vamos repeti-las todas aqui, pois não faz muita diferença (aliás, praticamente nenhuma).
Por exemplo, poderíamos somar as multinacionais com as principais empresas brasileiras que ainda restam no setor, em geral produtoras de autopeças. Fizemos isto a partir da lista da "Exame".
Na "produção de autoveículos" e em torno dela, existem 35 empresas estrangeiras e 20 nacionais (fazendo vista grossa para os casos duvidosos), que estão entre as mil maiores do país. O faturamento líquido das 35 multinacionais foi, em 2011, US$ 95,741 bilhões. O faturamento das outras 20 empresas foi US$ 10,803 bilhões. Portanto, ao todo, US$ 106,544 – ou seja, 4,3% do PIB.
A importância desse tipo de cálculo é que são exatamente essas as empresas que determinam a participação do setor no PIB.

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