sábado, 3 de julho de 2010

PATRICIE LUMUMBA: DISCURSO QUE PERMANECE GRAVADO NOS CORAÇÕES E NAS MENTES CONGOLESES

Oferecemos aos nossos leitores a íntegra, traduzida do texto em francês, do discurso de Patrice Lumumba no dia da independência do Congo, 30 de junho de 1960.

O Movimento Nacional Congolês (MNC), preocupado com a unidade política do país, estabelecera, para formar o governo após a independência, aliança com outros partidos - o principal deles era a ABAKO (Alliance des Bakongo), apesar de, ao contrário do MNC, que tinha como programa a superação das divisões tribais, esse outro partido, sempre bastante conciliador em relação ao colonialismo belga, ser, até mesmo no nome, um grupo tribal.

Ao líder da ABAKO, Joseph Kasavubu, caberia a Presidência do Congo, enquanto o MNC, com sua maioria parlamentar, indicaria o primeiro-ministro - Patrice Lumumba.

No entanto, o primeiro-ministro foi excluído da lista de oradores na cerimônia oficial, com a presença do rei Baudoin, da Bélgica. Apenas Kasavubu falaria – e, após o arrogante pronunciamento do rei, fez o que alguém já chamou de “discurso de lacaio”.

Então, Lumumba levantou-se e ninguém o impediu de falar. Pronunciou o que é um dos grandes monumentos oratórios da Humanidade. Ao contrário de Kasavubu, não dirigiu-se ao rei, exceto ao final, tratando-o pelo genérico “Sire”, ao invés de “Majestade”. Preferiu dirigir-se aos seus compatriotas.

O discurso de Lumumba não é, em nenhum momento, histérico ou inábil politicamente – inclusive, como o leitor verá, em relação à Bélgica. Mas, também, nem por um momento é submisso.

Nesta página, republicamos, ao lado desse discurso, o último escrito de Lumumba, sua carta à esposa, Pauline, quando já estava preso e sob quase constante tortura.

Não faremos mais comentários sobre estes documentos, pois o leitor poderá fazer por si próprio o seu julgamento.

Resta, ainda, contar, embora muito sucintamente, o final – até agora - desta epopeia:

1) Kasavubu pagaria muito caro pela traição a Lumumba: depois de ceder completamente aos colonialistas belgas e imperialistas norte-americanos, foi deposto em 1965 por Mobuto, apoiado e instrumentalizado pela CIA. Kasavubu passaria quatro anos numa terrível “prisão domiciliar” e morreria por falta de cuidados médicos.

2) Pierre Mulele, ministro da Educação de Lumumba, terceiro nome na lista da CIA para ser eliminado, liderou, a partir do final de 1963 até 1968, a luta armada conhecida como a Revolta dos Simbas (leões, na língua swahili). Exilado em Brazzaville, na República do Congo (ex-Congo francês), foi obrigado a voltar a Kinshasa, depois que Mobuto assinou um acordo com esse país, garantindo “anistia” para Mulele e seus companheiros. O próprio ministro do Exterior de Mobuto foi a Brazzaville para acompanhar Mulele em seu retorno, como suposta demonstração de que a anistia seria respeitada. Ao chegar a Kinshasa, Mulele foi preso, torturado publicamente e, ainda vivo, esquartejado. Apesar dos sofrimentos inauditos, que nos poupamos de descrever, Mulele manteve até a morte aquela rara dignidade referida por todos aqueles que o conheceram. Hoje, a avenida principal de Kinshasa tem o nome de Pierre Mulele.

3) A ditadura de Mobuto foi derrubada em 1997, pelo levante liderado pelo presidente Laurent Kabila.

4) Pauline Lumumba e seus filhos voltaram ao Congo depois da derrubada da ditadura e hoje participam da vida política congolesa.

5) Antoine Gizenga, vice-primeiro-ministro de Lumumba e segundo na lista de eliminação da CIA, liderou a resistência logo após o assassinato, saindo do país após a queda de Stanleyville (hoje, Kisangani). Depois de derrubada a ditadura, Gizenga voltou ao Congo e foi primeiro-ministro do presidente Joseph Kabila; hoje é líder do Partido Lumumbista Unificado (PALU) e herói nacional do país.

6) As ideias de Lumumba são hoje a principal referência do movimento de independência nacional dos países africanos.

7) O Congo, apesar de todas as dificuldades, após a derrubada de Mobuto, resistiu à recolonização – e continua a trajetória daquela “luta sublime” que Lumumba apontou em seu discurso do dia da independência.

C.L.

PATRICE LUMUMBA

Congoleses e congolesas,

Combatentes hoje vitoriosos da independência,

Eu vos saúdo em nome do governo congolês.

A todos vocês, meus amigos, que lutaram sem descanso ao nosso lado, peço que façam deste 30 de junho de 1960 uma data ilustre e que a guardem indelevelmente gravada em seus corações, uma data que vocês ensinarão, com orgulho, aos seus filhos o significado, para que eles façam conhecer aos seus filhos a história gloriosa da nossa luta pela liberdade.

Pois esta independência do Congo, se hoje é proclamada com a concordância da Bélgica, país amigo com quem tratamos de igual para igual, nenhum congolês digno deste nome jamais poderá esquecer, foi conquistada pela luta, uma luta de todos os dias, uma luta ardente e idealista, uma luta na qual não poupamos nem nossas forças, nem nossas privações, nossos sofrimentos, nem nosso sangue.

Desta luta, que foi de lágrimas, fogo e sangue, estamos orgulhosos até ao mais profundo de nós mesmos, pois foi uma luta nobre e justa, uma luta indispensável para por fim à humilhante escravidão que nos era imposta pela força.

Qual foi a nossa sorte durante 80 anos de regime colonial, as nossas feridas estão ainda muito frescas e muito dolorosas para que nós possamos removê-las da nossa memória; nós conhecemos o trabalho exaustivo, exigido em troca de salários que não nos permitiam nem comer para matar a nossa fome, nem nos vestir ou morar decentemente, nem criar nossos filhos como seres amados.

Nós conhecemos as ironias, os insultos, as pancadas que devíamos suportar, de manhã, de tarde e de noite, porque éramos negros.

Quem esquecerá que a um negro se dizia “tu”, certamente não como se diz a um amigo, mas porque o respeitável “vous” era reservado somente aos brancos?

Nós conhecemos a pilhagem de nossas terras, espoliadas em nome de textos pretensamente legais que não faziam mais do que reconhecer o direito do mais forte.

Nós conhecemos o que era a lei não ser a mesma, caso se tratasse de um branco ou de um negro, confortável para uns, cruel e desumana para os outros.

Nós conhecemos os sofrimentos atrozes dos que foram degredados por opiniões políticas ou por crenças religiosas, exilados em sua própria pátria, com sorte pior do que a morte.

Nós conhecemos o que era haver casas magníficas para os brancos e palhoças miseráveis para os negros, ou, nas lojas ditas europeias, um negro nem poder entrar, ou, nas barcaças, um negro viajar como um galináceo, aos pés do branco em sua cabine de luxo.

Quem esquecerá, enfim, os fuzilamentos onde pereceram tantos de nossos irmãos, as masmorras onde foram brutalmente atirados aqueles que não queriam mais se submeter ao regime de injustiça, opressão e exploração?

Tudo isso, meus irmãos, nós temos sofrido profundamente. Mas, também, tudo isso, nós, que fomos escolhidos, pelo voto dos seus representantes eleitos, para governar o nosso amado país, nós, que sofremos em nosso corpo e em nosso coração a opressão colonialista, dizemos a vocês, em voz alta: tudo isso finalmente acabou.

A República do Congo foi proclamada e o nosso querido país está agora nas mãos dos seus próprios filhos. Juntos, meus irmãos, minhas irmãs, começaremos uma nova luta, uma luta sublime que levará o nosso país à paz, à prosperidade e à grandeza.

Juntos, nós vamos estabelecer a justiça social e assegurar que cada um receba a justa remuneração por seu trabalho.

Mostraremos ao mundo o que pode fazer o homem negro quando trabalha em liberdade, e faremos do Congo o centro de iluminação de toda a África.

Nós vigiaremos para que as terras de nossa pátria tragam benefícios verdadeiramente para seus filhos.

Nós vamos rever todas as leis de outrora e fazer novas, que serão justas e nobres. Nós vamos pôr fim à opressão do pensamento livre e fazer com que todos os cidadãos gozem plenamente das liberdades fundamentais previstas na Declaração dos Direitos do Homem.

Nós vamos suprimir eficazmente toda discriminação, seja ela qual for, e dar a cada um o justo lugar que merece sua dignidade humana, seu trabalho e sua dedicação ao país.

Nós faremos reinar, não a paz dos fuzis e das baionetas, mas a paz dos corações e da boa vontade.

Para tudo isto, queridos compatriotas, podem estar seguros de que poderemos contar não somente com as nossas enormes forças e as nossas imensas riquezas, mas também com a ajuda de numerosos países estrangeiros, cuja colaboração, sempre que for leal e não procurar nos impor uma política, seja ela qual for, aceitaremos sempre.

Nesse domínio, a Bélgica, que compreende enfim o sentido da História, não tentando opor-se à nossa independência, está disposta a conceder-nos sua ajuda e amizade, e um tratado foi assinado nesse sentido entre nossos dois países iguais e independentes.

Essa cooperação, estou seguro, será vantajosa para os dois países. De nosso lado, mantendo-nos alertas, saberemos respeitar os compromissos livremente consentidos.

Assim, tanto interna quanto externamente, o Congo, nossa querida república que meu governo irá criar, será um país rico, livre e próspero.

Mas, para que cheguemos sem atraso a esse objetivo, peço a todos, legisladores e cidadãos congoleses, que me ajudem com todas as suas forças.

Peço a todos que esqueçam as querelas tribais que nos esgotam e que nos fazem correr o risco de sermos desprezados no exterior. Peço à minoria parlamentar que ajude meu governo com uma oposição construtiva, ficando estritamente dentro das vias legais e democráticas.

Peço a todos que não recuem diante de nenhum sacrifício para assegurar o ressurgir da nossa grandiosa tarefa. Peço a todos, finalmente, que respeitem incondicionalmente a vida e os bens de seus concidadãos e dos estrangeiros estabelecidos em nosso país.

Se a conduta desses estrangeiros deixar a desejar, a nossa Justiça estará pronta a expulsá-los do território da República; se, pelo contrário, sua conduta é boa, é preciso deixá-los em paz, pois também eles trabalham para a prosperidade de nosso país.

A independência do Congo é um passo marcante para a libertação de todo o continente africano.

Eis o que, Sire, Excelências, minhas senhoras e meus senhores, meus queridos compatriotas, meus irmãos de minha raça, meus irmãos de luta, eu queria dizer-lhes, em nome do governo, neste dia magnífico de nossa independência completa e soberana.

Nosso governo forte, nacional, popular, será a salvação deste país. Convido todos os cidadãos congoleses, homens, mulheres e crianças, a irem resolutamente ao trabalho para criar uma economia nacional próspera que consagrará nossa independência econômica.

Homenageemos os combatentes da liberdade nacional!

Viva o Congo independente e soberano!

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