terça-feira, 27 de janeiro de 2009



QUANDO LER JORNAL FAZ MAL AO FIGADO (1)
O argumento e de que não pode haver discernimento da realidade sem a leitura também pode conter uma injusta soberba acadêmica para com esta grande maioria de brasileiros, hoje ainda proibida da leitura de jornais e livros por razões fundamentalmente sócio-econômicas
BETO ALMEIDA*
Ao declarar à Revista Piauí de janeiro que não lia jornal porque sofre de azia, Lula talvez tenha deixado muitos jornalistas perplexos e desapontados. E também intelectuais inconformados. Roberto Damatta, por exemplo, reagiu num típico “pito acadêmico” proclamando, em artigo publicado no Estadão, que não se pode ter discernimento da realidade sem a leitura, mas parece tomar uma crítica informal de Lula a um certo jornalismo como se fosse uma aversão à leitura em geral. Ao repreender Lula porque este parece “estar seguro de que é mesmo possível saber das coisas por tabela e em segunda mão, por meio de olhos alheios”, Damatta talvez polemize mais com Schopenhauer do que com o presidente. O célebre filósofo alemão também já havia causado muita celeuma, há mais de século, quando levantou dúvidas acerca da possibilidade de uma correta compreensão da realidade unicamente a partir da leitura, pondo em dúvida a qualidade dos textos, inclusive nos jornais. Questionando aqueles que absolutizam a leitura, Schopenhauer afirma que “assim como a leitura, a mera experiência não pode substituir o pensamento”. E para aqueles, como Damatta, que deploram os que não lêem e porque aprenderiam por tabela, o pensador germânico sustenta ainda que “um livro nunca pode ser mais do que a impressão dos pensamentos do autor”, alertando que “quando lemos, somos dispensados, em grande parte, do trabalho de pensar” e que, “a nossa cabeça é, durante a leitura, uma arena de pensamentos alheios”. Citá-lo não significa defender suas posições históricas, mas adicionar elementos na polêmica atual, quando vivemos na “idade mídia” sob intenso dilúvio informativo, com variadas possibilidades de informação. A celeuma levanta também reflexões interessantes, não só comentários injustos, já que Lula não fez nenhuma apologia da não-leitura, e sim uma crítica ao jornalismo atual. E o fez ao seu modo, com um raciocínio nada convencional, porque é o raciocínio simples e direto sintonizado e compreendido pela grande massa da população, que durante toda uma vida também foi praticamente proibida da leitura. Assim, poderíamos partir do princípio de que, tal como a esmagadora maioria do povo brasileiro, o presidente Lula também não lê jornal. E confessa. As razões são múltiplas e até diferentes em cada caso.
O argumento de que não pode haver discernimento da realidade sem a leitura também pode conter uma injusta soberba acadêmica para com esta grande maioria de brasileiros, hoje ainda proibida da leitura de jornais e livros por razões fundamentalmente sócio-econômicas. É injusta porque ignora ou despreza outras modalidades de discernimento, interpretação e ação transformadora das grandes massas sobre esta mesma realidade. Segundo estatísticas da UNESCO - talvez não sejam as mais atuais - a taxa de leitura de jornais e revistas no Brasil é inferior à da Bolívia, país mais pobre da América do Sul, mas que acaba de realizar uma façanha que exige reconhecimento de todos nós: a Bolívia foi declarada, no dia 20 de dezembro último, pela mesma UNESCO “Território Livre do Analfabetismo”. Segundo a Agência da ONU, enquanto no Brasil são lidos apenas 27 exemplares de jornais ou revistas por cada grupo de 1 mil leitores, na Bolívia, são 29 exemplares. Talvez, o que devesse merecer mais a preocupação da academia é o fenômeno da leitura-proibida, um sistema que torna difícil o acesso dos brasileiros à leitura, que não educa leitores, que não democratiza livros, ao invés de uma quase indignada/desconcertada reação diante da evidente crítica feita pelo presidente Lula à qualidade do jornalismo praticado no Brasil.
Será que a informalidade da crítica de Lula - preciosa característica do presidente, sobretudo quando a cultiva no exercício do cargo - a um certo jornalismo que já chegou a entrar de modo desrespeitoso e arrasador na vida pessoal e familiar do presidente em sua primeira campanha, ao mesmo tempo que preservou obedientemente outros presidentes do mesmo desconforto, não tem razão de ser? Estaria, afinal, acima de críticas um jornalismo que tem reiteradamente operado mais como desinformação da sociedade do que como a instrumento de comunicação social, tal como estabelecido pela Constituição Federal?
OUÇA UM BOM CONSELHO
Tomemos alguns casos recentes de “jornalismo que faz mal ao fígado”, alguns já argumentados pelo próprio presidente, para alargarmos este debate.
Quando o governo brasileiro propôs à Unasul, em sua primeira reunião, a formação de um Conselho de Defesa Sul-americano, praticamente todos os jornais estamparam, com fartura, que a proposta havia sido derrotada, rejeitada, um fiasco, afinal. Pouco tempo depois, a proposta do Conselho, debatida e examinada com tempo pelos governos, foi oficialmente aprovada e é hoje uma realidade. Mais do que isso, tem a importância histórica de ser uma entidade sem a presença dos EUA, que sempre tutelaram a região com ferro e fogo das ditaduras, mas também, de representar um esforço coordenado de recuperação da indústria bélica regional, com a relevância intrínseca - ainda mais destacada por vivermos num mundo de sombras, tensões e violência - de promover independência tecnológica setorial. Afinal, um país sem defesa não tem soberania! Será que os jornais que manchetaram “o fracasso do Conselho” estariam agora dispostos a confessar seu equívoco e reavaliar a informação defeituosa que difundiram? E a esclarecer, com informações verazes, o significado de reorientação estratégica que a nova entidade tem, sobretudo quando os países emergentes foram praticamente obrigados a aceitar a demolição de suas políticas de defesa e de suas indústrias bélicas? Alguém sabe informar se o Procon também cuida de informação com defeito???
A FAZENDA QUE NÃO FOI VENDIDA
Um segundo caso diz respeito também à família do presidente, sempre alvo de comentários preconceituosos, como de resto os que se lançam também contra o presidente Evo Morales, por ser indígena, ou ao presidente Hugo Chávez, por suas características étnicas e sua origem militar. Refiro-me à “notícia” de suposta compra de uma grande fazenda por um dos filhos do presidente Lula. Até mesmo o portal da Central de Mídia Independente reproduziu a suposta transação, acompanhada de inúmeros comentários insultantes e ofensivos ao presidente Lula. E mesmo depois que, numa pequeníssima nota da Agência Estado, o proprietário da referida fazenda esclarecia que já estava cansado de atender jornalistas ao telefone e desmentir cabalmente que tenha vendido o imóvel para o filho do presidente ou para qualquer outro, mesmo assim, nem a Central de Mídia Independente dignou-se a corrigir seu erro de difundir versões de um “jornalismo que faz mal para o fígado”, mantendo, até bem pouco tempo no portal, a falsa notícia da compra da fazenda, e a mesma coleção de insultos ao presidente. Nem os outros veículos cuidaram de divulgar as declarações do verdadeiro proprietário do imóvel desmentindo a transação. Qual o nome que deve ser dado a este “jornalismo”? Ou melhor, será isto jornalismo? Mas que dá azia... isso dá.
ONDE ESTÃO OS PROFETAS DO CALOTE
Mais recentemente, o Globo estampou em primeira página manchete sobre a preparação de um calote do Equador contra o Brasil, insinuando que até mesmo funcionária da Receita Federal brasileira havia sido cedida para trabalhar nesta operação, cujo intuito seria o de evitar que os financiamentos feitos pelo BNDES ao país andino fossem saldados. Gravíssima acusação: o governo cederia uma funcionária para preparar calote contra ele. Mas, o jornal não publicou o pedido de direito de resposta da funcionária da Receita informando objetivamente que não tinha prestado qualquer consultoria técnica relativa a financiamentos brasileiros ao Equador, mas sim à Auditoria da Dívida Privada que está curso naquele país, uma decisão de Estado inscrita na Constituição, tal como consta das Disposições Transitórias de nossa Constituição a realização de uma auditoria da dívida. No fundo, este é o temor dos banqueiros refletido por este jornalismo que dá azia. Um jornalismo que cuida de preservar os indecentes privilégios que o setor financeiro tem no mundo da economia, da especulação, que despreza o valor do trabalho, transformando o sistema bancário mundial numa bancocracia ou verdadeiro cassino, como também lembrou o presidente. Há quanto tempo não temos um presidente que chama as coisas pelo verdadeiro nome!!!! Pois bem. Especulou-se no jornal, depois no rádio, depois na tv, sobre o calote equatoriano ao Brasil. O jornalismo aziago teve todo o espaço do mundo, consultores ligados aos bancos foram hiper-entrevistados, repetiram-se, anunciaram o caos. Mas, quando na semana em que o Governo Equatoriano pagou a parcela de 243 milhões de dólares da dívida para com o BNDES, os profetas do calote se calaram, os consultores desapareceram e o Globo não informou aos seus leitores, com a mesma importância que havia dado inicialmente ao tema, que não houve calote. Eis aqui um exemplo de como a leitura de jornal também pode não conduzir a um correto discernimento da realidade...
JORNALISMO DA DESINTEGRAÇÃO
Muitos exemplos justificam uma maior reflexão e elaboração sobre o que vem a ser um jornalismo de desintegração, aquele que desconsidera ou não informa sobre a implementação de medidas reais, de Estado, visando a integração regional latino-americana. A este jornalismo da desintegração, que também pode causar azia, que decreta editorialmente que a integração é apenas retórica diletante do Itamaraty, deve-se contrapor com um jornalismo de integração, ainda por ser elaborado, mas que tem como sustentação teórica, histórica e política nada menos que a Constituição, na qual está consolidado que a construção de uma integração latino-americana baseada na solidariedade, na economia, na cultura, na informação é um objetivo da República Federativa do Brasil. Claro, o jornalismo que faz mal ao fígado prefere apenas cultuar e pôr em prática o artigo 166 da Constituição, aquele que sacraliza a gastança com os serviços da dívida, tornando-os mais importante do que merenda escolar, saúde pública, habitação popular, previdência social etc. Contra esta gastança, esta verdadeira esterilização de recursos públicos nos juros da dívida, o jornalismo aziago nada informa. Quando o Brasil realizou com sucesso o teste do Veículo Lançador de Satélites, em dezembro, a mídia não noticiou, ignorando a dimensão deste fato, quando apenas um clube fechado de países tem acesso ao mundo da estratégica economia satelital. Tal como ignorou quando a Venezuela, recentemente, lançou o satélite Simon Bolívar, preferindo ironizar que Chávez tenha declarado que é um satélite socialista. Sim, será colocado à disposição de países pobres para a cooperação. Onde cabe a ironia? Ambos os casos são de avanço da independência tecnológica.
Aliás, foi necessário um “presidente que não lê”, conforme define o acadêmico Damatta, para que o idioma espanhol tenha se transformado em matéria obrigatória nas escolas básicas brasileiras, com indiscutível impulso à integração latino-americana, como também para que o Brasil assumisse a construção da Unila (Universidade da Integração Latino-Americana), assim como a Universidade da África, em Redenção, cidade cearense, pioneira na abolição da escravatura. Mas, para o jornalismo da desintegração tudo isto é apenas retórica itamarateca terceiro-mundista. Até mesmo a retirada do dólar nas operações comerciais Brasil-Argentina, a cooperação entre os dois vizinhos na construção de um carro de combate, na indústria aeronáutica e na esfera nuclear, ou a participação brasileira na construção de um gasoduto na argentina, ou nas obras de infra-estrutura no Peru e Bolívia, na construção da estrada que ligará finalmente o Atlântico ao Oceano, a presença da Embrapa na Venezuela ou no Timor Leste, da Petrobrás em Cuba, tudo isto, apenas retórica. Farta-se de repetir o jornalismo que faz mal ao fígado. Mas, quando aquele chanceler de sobrenome judeu tirou o sapato ante as ordens de um guardinha da alfândega dos EUA, este mesmo jornalismo tangenciou a simbologia do gesto. Como qualificar? Vocação para a vassalagem???
Muito ainda precisa ser feito para que o Brasil supere seus níveis indigentes de leitura, sobretudo no campo das políticas públicas. É motivo de preocupação a monopolização do setor editorial, sobretudo a do livro didático, bem como sua desnacionalização e controle por editoras estrangeiras muito próximas da Opus Dei. Mas, são salutares e devem ser expandidas fortemente as políticas públicas já implementadas pelo governo Lula e governos como o do Paraná para assegurar o livro didático público e gratuito aos milhões. Estamos na era das mudanças e na mudança de eras também quando o país mais pobre da América do Sul, a Bolívia, consegue extirpar a praga do analfabetismo ou quando a Venezuela, também declarada território livre do a-nalfabetismo pela Unesco, distribui gratuitamente 1 milhão de exemplares do livro “Dom Quixote”, de Cervantes, “Os miseráveis”, de Vitor Hugo, “Contos”, de Machado de Assis, este com uma distribuição gratuita de 300 mil exemplares. Basta informar que a tiragem padrão de livros no Brasil é de apenas 3 mil exemplares. Segundo a Unesco, Cuba chegou a publicar, em 1986, 480 milhões de exemplares de livros num ano, quando sua população era de apenas 10 milhões de habitantes. Ainda temos muito que aprender, muito por fazer nesta área.
A DIALÉTICA DO RETIRANTE
Mas, esta dívida informativo-cultural despejada pelas elites sobre o povo brasileiro, proibindo-o da leitura, não deve ser mecanicamente dimensionada como um obstáculo intransponível para que os milhões e milhões que não leem jornal ou qualquer coisa não tenham um discernimento adequado da realidade. Talvez não tenham o “discernimento” que segmentos das elites, econômica ou cultural, gostariam que o povo tivesse, sobretudo para uma escolha eleitoral sintonizada à linha editorial do jornalismo que faz mal ao fígado. Realmente, a maioria do povo, tal como o presidente Lula na sua dialética de retirante, foi obrigada a desenvolver uma interpretação realista do mundo para salvar a própria vida. Lula declarou recentemente que quando um nordestino, nem ele consegue vencer a pena de morte da elevada taxa de mortalidade infantil no nordeste “torna-se um encrenqueiro”. Para os que admiram o fato de que ele tenha levado 13 dias de viagem num pau-de-arara para ir de Garanhuns a São Paulo, dormindo ao relento e cozinhando com as águas barrentas do Velho Chico, ele lembrou que seus tios, que também não liam jornal, já tinham feito o mesmo percurso, mas em seis meses, porque o fizeram a pé!!!! São atos heróicos que apontam para uma outra leitura do mundo, a partir da dialética do retirante, tão capaz de permitir um real discernimento da vida como capaz de permitir que salvassem suas próprias vidas e permitindo-lhes progredir na mobilidade social, superar os estágios de sobrevivência vegetativa quase animalesca a que estavam condenados no nordeste sem água, sem terra, sem trabalho e sem nada!!! E sem jornal para ler...
Talvez, alguns círculos acadêmicos irritem-se ainda mais com esta abordagem e a condenem como elogio à não-leitura. Mas, o que se trata de argumentar aqui é que para aqueles milhões de brasileiros condenados à não-leitura, por razões do elitismo sócio-econômico, não há outra saída que não inventar uma forma nova de ler o mundo, de caminhar na vida, de discernir, sim, a realidade e de uma forma tão eficiente que lhes permitiu, no caso de Lula, sair da indigência do sertão, preparar a si próprio para escapar da pena de morte da fome, preparar coletivamente a classe trabalhadora para fazer política, construir instrumentos como o PT e a CUT para que viabilizar o protagonismo dos próprios trabalhadores na política e alcançar a Presidência da República. E o fez não exatamente a partir da leitura de jornal, mas informando-se profundamente sobre o funcionamento da sociedade. Afinal, nem sempre ler jornal é informar-se.
Em muitos casos, como vimos acima, é exatamente o contrário. A provocação de Schopenhauer ainda está bailando por aí. E ele acrescenta: “há eruditos que ficam burros de tanto ler”.
*Presidente da TV Comunitária de Brasília

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