sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Os escritores “refinados” e sua aversão às imagens cruas e vivas da realidade

Em abril de 1937, Graciliano Ramos escreveu um pequeno artigo, “Norte e Sul”. Nele, defendeu o conteúdo social na literatura e o realismo – que naquela quadra eram representados principalmente pelos romancistas nordestinos – contra a escrita desnaturada de certas correntes, existentes sobretudo no sudeste (na época, dizia-se, genericamente, “sul”, da mesma forma que os estados acima de Minas eram chamados de estados do “norte”). O alvo de Graciliano é, principalmente, o grupo de escritores “católicos”, cujos principais nomes foram Octavio de Farias e Lúcio Cardoso – representantes de uma corrente politicamente reacionária, tendente ao fascismo, na literatura brasileira. Depois do rompimento de Vinícius de Moraes, único grande artista sob sua influência, esse grupo iria se tornar insignificante enquanto corrente literária. Mas isso somente aconteceria em 1942, durante a viagem de Vinícius ao Nordeste, quando conheceu João Cabral de Melo Neto, iniciando a profunda identificação com o povo que o poeta carioca aprofundaria, cada vez mais, no correr de sua vida, tornando-se para sempre um adversário irredutível do fascismo. O artigo de Graciliano, pela enxuta síntese que faz da luta dentro da literatura brasileira, é uma daquelas pequenas obras-primas que frequentemente são subestimadas, diante de obras maiores do escritor alagoano. Por esta razão, oferecemos esse texto aos nossos leitores.
C.L.
GRACILIANO RAMOS
Essa distinção que alguns cavalheiros procuram estabelecer entre o romance do norte e romance do sul dá ao leitor a impressão de que os escritores brasileiros formam dois grupos, como pastorinhas do Natal, que dançam e cantam filiadas ao cordão azul ou ao cordão vermelho.
Realmente a geografia não tem nada com isso. Não podemos traçar no mapa uma linha divisória dos campos onde os cordões cantam e dançam.
O que há é que algumas pessoas gostam de escrever sobre coisas que existem na realidade, outras preferem tratar de fatos existentes na imaginação. Esses fatos e essas coisas viram mercadorias. O crítico, munido de balanças e outros instrumentos adequados, pode medi-las, pesá-las, decidir sobre a mão-de-obra e a qualidade da matéria-prima, até certo ponto aumentar ou reduzir a procura, mas quem julga definitivamente é o freguês, que compra e paga.
O fabricante que não acha mercado para o seu produto zanga-se, é natural, queixa-se com razão da estupidez pública, mas não deve atacar abertamente a exposição do vizinho. O ataque feito por um concorrente não merece crédito, o consumidor desconfia dele.
Ora, nestes últimos tempos surgiram referências pouco lisonjeiras às vitrinas onde os autores nordestinos arrumam facas de ponta, chapéus de couro, cenas espalhafatosas, religião negra, o cangaço e o eito, coisas que existem realmente e são recebidas com satisfação pelas criaturas vivas.
As mortas, empalhadas em bibliotecas, naturalmente se aborrecem disso, detestam o sr. Lins do Rego, que descobriu muitas verdades há séculos, escondidas no fundo dos canaviais, o sr. Jorge Amado, responsável por aqueles horrores da Ladeira do Pelourinho, a sra. Raquel de Queirós, mulher que se tornou indiscreta depois do “João Miguel”.
Os inimigos da vida torcem o nariz e fecham os olhos diante da narrativa crua, da expressão áspera. Querem que se fabrique nos romances um mundo diferente deste, uma confusa humanidade só de almas, cheias de sofrimento atrapalhados que o leitor comum não entende. Põem essas almas longe da terra, soltas no espaço. Um espiritismo literário excelente como tapeação. Não admitem as dores ordinárias, que sentimos por as encontrarmos em toda a parte, em nós e fora de nós. A miséria é incômoda. Não toquemos em monturos.
São delicados, são refinados, os seus nervos sensíveis em demasia não toleram a imagem da fome e o palavrão obsceno. Façamos frases doces. Ou arranjemos torturas interiores, sem causa. É bom não contar que a moenda da usina triturou o rapaz, o tubarão comeu o barqueiro e um sujeito meteu a faca até o cabo na barriga do outro. Isso é desagradável.
É mesmo. É desagradável, mas é verdade. E o que é mais desagradável, e também verdade, é reconhecer que, apesar de haver sido muitas vezes xingada essa literatura o público se interessa por ela.
Orientemos o público. A ordem é apitar, estrilar, reduzir ao silêncio alguns tipos indesejáveis.
Não há grupo do norte nem grupo do sul, está claro. Mas realmente os nordestinos têm escrito inconveniências. Pois não é que o sr. Amando Fontes foi dizer que as filhas dos operários se prostituem?
Ataquemos o sr. Amando Fontes e outros, os que têm aparecido ultimamente do Ceará até à Bahia, excetuando os que não disseram nada. Vamos falar mal de todos os romancistas que aludem à fome e à miséria das bagaceiras, das prisões, dos bairros operários, das casas de cômodos. Acabemos tudo isso.
E a literatura se purificará, tornar-se-á inofensiva e cor-de-rosa, não provocará o mau humor de ninguém, não perturbará a digestão dos que
podem comer. Amém.

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