sexta-feira, 28 de novembro de 2008

“Nosso lixo pelo seu dinheiro”
O artigo de Michael Hudson, publicado na revista Counterpunch, do qual transcrevemos os principais trechos, mostra, com minúcia de detalhes, como os banqueiros dos EUA extorquem o Congresso e o G-20 “aplicando a lógica de ‘privatizar os lucros, socializar as perdas’, que os lobistas dos bancos aperfeiçoaram ao longo do século passado”. Segundo Hudson, o secretário do Tesouro Henry Paulson “decidiu que o melhor meio de ‘estabilizar a economia’ é permutar títulos do Tesouro por lixo de alto risco, comprado pelo valor de face, livrando os bancos da perda”
A fartura de dólares foi um dos fatores-chave que agravaram o problema das hipotecas-lixo nos anos recentes. Se os países estrangeiros não investirem mais os seus influxos de dólares na Fannie Mae, no Freddie Mac e nos pacotes tóxicos de derivativos de hipotecas, o que eles vão fazer com esses dólares? O governo dos EUA recusa-se a deixar que fundos de governos estrangeiros adquiram qualquer coisa exceto lixo financeiro, tal como as afundantes ações do Citibank compradas por sheiks árabes do petróleo.
O déficit de pagamentos dos EUA bombeia dólares para as economias de outros países. Os que recebem esses dólares passam-nos aos seus bancos centrais. Mas esses últimos impediram as suas respectivas moedas de subir em relação ao dólar (e, portanto, de perder mercados externos ao encarecer as exportações) através da compra de títulos do Tesouro dos EUA, de forma a sustentar a taxa de câmbio do dólar pela reciclagem dos dólares, enviando de volta aos Estados Unidos o suficiente para financiar a maior parte do nosso déficit orçamentário federal, e, na verdade, também grande parte dos empréstimos hipotecários da Fannie Mae.
O sr. Bush gostaria de moldar o sistema financeiro de modo que as economias estrangeiras continuassem a dar almoço grátis aos Estados Unidos. Autoridades dos EUA controlam o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, e utilizam essas instituições para impor políticas neoliberais de privatização aos países estrangeiros, destruindo, com isso, as economias pós-soviética, a Austrália e a Nova Zelândia a partir da década de 90, assim como destruíram as economias do Terceiro Mundo desde os anos 80.
O sr. Paulson e outras autoridades dos EUA estão há muito jurando aos ministros das finanças estrangeiros que os títulos da Fannie Mae e do Freddie Mac são tão bons quanto os títulos do Tesouro, se bem que rendendo juros mais elevados.
O Congresso caiu nesse jogo. Agora que o “bailout” parece um presente de último minuto para os que estavam por dentro do jogo, o Congresso realizou audiências para perguntar porque o Tesouro abandonou o seu plano de comprar “ativos doentes” (lixo hipotecário) que o sr. Paulson dizia que era o problema. Por que o Tesouro comprou US$ 250 bilhões de sucedâneos de “ações preferenciais” dos bancos, a preços muito acima daqueles que pagam investidores privados como Warren Buffett?
Desenhando um mundo faz-de-conta para justificar o almoço grátis de Wall Street, o sr. Paulson procurou desviar a questão com uma série de “ses”. Os US$ 250 bilhões do Tesouro em ações dos bancos poderiam ser utilizados para re-inflar a oferta de crédito se os bancos optassem por entrar novamente no mercado de títulos comerciais e fornecessem hipotecas em condições mais módicas. A fantasia consiste nos bancos restaurarem o “equilíbrio” através de conceder mais crédito, aumentando o endividamento de seus clientes, de modo a restaurar o mercado habitacional no seu nível anterior.
Os congressistas frisaram que os bancos não estavam emprestando mais dinheiro. As taxas de juros das hipotecas subiram, não caíram, apesar do Fed estar suprindo os bancos com crédito a apenas 0,25%. As exigências dos bancos para conceder crédito foram endurecidas para exigir que os compradores pusessem mais do seu próprio dinheiro. Os arrestos e despejos estão aumentando e os preços imobiliários continuam a afundar. Também afundando quase na vertical está a Média Industrial Dow Jones, indo abaixo da marca dos 8000, os mais baixos níveis em muitos anos. Nada funciona da forma que o sr. Paulson prometeu.
A palavra mais utilizada pelas autoridades do Tesouro nestes dias é “inesperado”. Na audiência do seu subcomitê, [o deputado] Dennis Kucinich perguntou ao auxiliar de Paulson, Neel Kashkari, se a falta de previsão realista do Tesouro era um erro inocente ou um caso de propaganda enganosa. O sr. Kashkari se defendeu recitando que as dádivas aos bancos eram o meio de fazer com que a economia “andasse” outra vez. Os bancos utilizariam o seu readquirido poder para ajudar os clientes a voltar a se endividar ainda mais profundamente, presumivelmente às taxas exponenciais necessárias para re-inflar os preços da propriedade e das ações.
O congressista republicano Darrill Issa perguntou simplesmente quando o Tesouro decidira descartar o texto da lei e prosseguir com uma dádiva alternativa à Wall Street, ao invés de ajudar proprietários de casas em inadimplência. Por que não havia feito como determinava a lei que o próprio sr. Paulson insistira que o Congresso aprovasse – arranjar ordenadamente cancelamentos de dívida através da utilização dos prometidos US$ 50 bilhões de dinheiro público para comprar hipotecas de lares em vias de despejo, e reajustar as hipotecas com preços altos, fora da realidade, para que elas refletissem os atuais níveis de preços das propriedades?
O sr. Kashkeri continuou tentando passar o tempo com uma explicação dos procedimentos de rotina do Tesouro. Ele assegurou que todas as noites se preocupava com o destino dos proprietários de casas, e disse que o sr. Paulson também estava roendo as unhas devido à sua empatia pelos despejados, mas que eles haviam achado muito melhor dar o dinheiro aos bancos na esperança de que eles mostrariam uma preocupação semelhante para com os seus clientes.
Aplicando a lógica de “privatizar os lucros, socializar as perdas”, que os lobistas dos bancos aperfeiçoaram ao longo do século passado, [Paulson] decidiu que o melhor meio de “estabilizar a economia” é permutar títulos do Tesouro por lixo de alto risco, comprado pelo valor de face, livrando os bancos da perda.
Pode-se concluir apenas que o sr. Paulson perpetrou uma fraude consciente quando disse ao Congresso que o governo descobrira um caminho melhor para a doação de dinheiro pingar dos bancos para o crédito, do que comprar os seus maus empréstimos. Ele, na verdade, está fazendo exatamente isto, mas em segredo, longe do olhar intrometido do Congresso, através do Fed [banco central norte-americano], a preço integral, ao invés de fazê-lo através do programa do Tesouro que o Congresso autorizou. O Fed avalia o lixo hipotecário pelos preços altos de fantasia que os bancos, a AIG e outras companhias o compraram, a fim de evitar-lhes o prejuízo. Os hedge funds e os especuladores que compraram lixo securitário da AIG foram considerados sadios, e os acionistas da AIG foram salvos pela injeção de capital do governo, de modo a que não tivessem prejuízos no cassino de Wall Street.
Agora que o Fed está fazendo isso, o Tesouro pode voltar-se para a sua própria forma de brinde aos bancos: comprar suas ações por um preço muito acima do mercado (isto é, o preço pago por investidores tais como Warren Buffett pelas ações do Goldman Sachs), permitindo aos bancos utilizarem o dinheiro para comprar outros bancos, distribuir dividendos a acionistas ou pagar altos salários aos seus executivos, ao invés de ajudar devedores hipotecários.
G-20
Ao falar na quinta-feira, 13 de Novembro, no Manhattan Institute, o presidente Bush repetiu o mito de que países estrangeiros reciclam demasiados dólares para a América por causa da nossa “economia forte” e dos nossos mercados livres.
A realidade é bastante diferente. Não existe uma tal coisa como “mercado livre”. Durante uns poucos dias após o anúncio da dádiva de US$ 700 bilhões, por reflexo automático, alguns adversários de gastos do governo denunciaram que era “socialismo”, mas rapidamente descobriram que nem todo gasto do governo é socialista. Independente do sistema econômico, todos os mercados são planejados, e sempre foram desde que os calendários foram inventados após a Era do Gelo.
A maior parte das estruturas de mercado ao longo da história foram organizadas de modo a proporcionar um almoço gratuito a determinados interesses. Isto permanece a essência do capitalismo pós-feudal – ou, como formularam alguns, do corporativismo.
O que acontece na prática é que os bancos centrais estrangeiros reciclam os dólares que os seus exportadores e vendedores de ativos recebem porque (como observado acima) a cotação das suas moedas frente ao dólar subiria se eles não o fizessem, pois isso poria o preço das suas exportações fora dos mercados mundiais, levando ao desemprego. Os países estrangeiros, portanto, estão na armadilha do dólar. Eles remetem as suas poupanças para financiar o déficit orçamentário do governo dos EUA, ao invés de ajudarem as suas próprias economias, porque não foram capazes de criar uma alternativa ao dólar. Logo depois da dívida do Tesouro, as hipotecas imobiliárias são a única categoria suficientemente grande para absorver o excesso de dólares jogado fora pelo déficit de pagamentos dos EUA – jogado fora com os gastos militares dos EUA no exterior, com os gastos em consumo que incham o déficit comercial e com fluxos de investimentos, quando investidores aqui e no exterior diversificam suas propriedades fora dos Estados Unidos. O resultado é que as reservas monetárias mundiais acabam por consistir de empréstimos de bancos centrais para financiar a bolha da economia dos EUA.
O que torna esta dinâmica instável é que as exportações dos EUA tornam-se cada vez menos competitivas quando os custos mais elevados com habitação e os encargos do serviço da dívida elevam o custo de vida e o custo de fazer negócios. Quanto mais dólares os países estrangeiros reciclam, menos a economia dos EUA será capaz de livrar-se das suas dívidas exportando mais. Assim, a dinâmica é com certeza um jogo perdedor para os governos estrangeiros – a menos que alguém possa explicar como os Estados Unidos poderiam gerar US$ 4 trilhões para reembolsar a sua dívida com os bancos centrais do mundo. Para tornar as coisas piores, a tendência declinante do dólar em relação ao euro e à libra esterlina obriga os credores estrangeiros a uma perda sobre os seus haveres em dólares quando seus valores são convertidos em suas próprias moedas.
Ninguém descobriu uma solução “orientada pelo mercado” para este problema. Agora que o ouro já não é mais o meio de ajustar déficits das balanças de pagamentos, falta aos bancos centrais estrangeiros uma alternativa ao dólar para manter as suas reservas monetárias. Isso faz com que eles fiquem com: (1) Títulos do Tesouro dos EUA; e (2) Títulos de hipotecas dos EUA. Nos últimos anos viu-se uma nova diversificação, via “fundos soberanos de riqueza”, na (3) propriedade direta de recursos minerais, companhias industriais, infraestrutura nacional privatizada e outras participações em investimentos, ao invés de dívida. Mas ainda que dando boas vindas a este último, o governo dos EUA procura limitar os bancos centrais estrangeiros a comprarem lixo hipotecário, lixo mobiliário e outros refugos financeiros.
A questão nas reuniões do G-20 é a desconfiança no sistema bancário não regulamentado dos EUA e, por trás disso, nos “reguladores” do governo que se recusam a regular. A China e outros receptores estrangeiros de dólares tratam o dólar como uma batata quente, tentando gastá-lo na compra de minerais estrangeiros, combustíveis e outros ativos de qualquer país que aceite pagamento em dólares. A maior parte dos tomadores [de dólares] são países do terceiro mundo ainda comprometidos com o pagamento de pesadas dívidas dolarizadas junto ao Banco Mundial e outros credores globais.
A Eurolandia está oficialmente numa recessão pela primeira vez desde o nascimento da moeda única, em parte porque os seus países-membros sentiram-se obrigados a utilizar os seus excedentes monetários para apoiar o dólar – e, portanto, o déficit orçamentário do Tesouro dos EUA – ao invés de apoiarem as suas próprias economias internas.
“ALMOÇO GRÁTIS”?
O Tesouro agora discute “bailouts” para os emissores de cartões de crédito, assumindo suas dívidas podres.
Os bancos e Wall Street ameaçam ruir a economia “entrando em greve” e criando um arrocho do crédito, forçando despejos e o colapso econômico, se o Congresso e o Fed não os livrarem do prejuízo sobre os seus maus empréstimos e derivativos financeiros. Os clientes devem absorver a perda.
A economia dos EUA tem vivido sobre uma combinação de reciclagem de dólar externo e crédito bancário que tem sido utilizada simplesmente para “criar riqueza” pela inflação de preços dos ativos, não pelo financiamento de nova formação de capital.
Por fazer isso, quando a coisa acabar, os bancos estarão insolventes. O Tesouro deu-lhes bilhões de dólares, e ainda mais como favoritismo fiscal especial, garantias de seguro de empréstimo e de depósito. Isso pode continuar só enquanto os bancos puderem fazer com que pareça impensável o colapso inevitável dos esquemas de juros compostos.
17/Novembro/2008
* Michael Hudson é economista e ex-consultor em Wall Street, hoje professor da Universidade do Missouri.

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