quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Bailout: Salvamento de poucos e servidão para muitos - parte 1


Nós estamos entrando agora no fim dos tempos financeiros. O "Plano A" (comprar hipotecas bichadas) fracassou, o "Plano B" (comprar ações inferiores nos bancos para recapitalizá-los sem varrer os atuais maus administradores) é um fiasco e as dívidas ainda assim não podem ser pagas. Esta é a realidade com a qual Wall Street evita se confrontar. "Primeiro eles o ignoram, depois eles o denunciam e após isso dizem que sempre souberam o que você estava dizendo", disse Gandhi. O mesmo se pode dizer da atual projeção de dívidas excedendo a capacidade da economia para pagá-las. Primeiro, os que tomam decisões políticas simulavam que elas podiam ser pagas, depois denunciaram os pessimistas por propagar o pânico, e então disseram que é claro que os estudantes vêm sendo ensinados há quatro mil anos, que a "mágica do juro composto" se mantém duplicando e reduplicando as dívidas mais rápido do que a economia pode arrancar um excedente econômico para pagá-las. O que acabou agora é a idéia de que "a magia do juro composto" pode tornar ricas as economias sem necessidade de trabalho nem indústria. Espero bem que tenhamos visto o fim das fórmulas derivativas que buscam fazer dinheiro com jogos de somar zeros. Uma dívida inflada acaba sempre na execução da propriedade do devedor ou na anulação da dívida a fim de preservar a liberdade e a eqüidade geral da economia. TODAS AS OPÇÕES Isto significa que a economia pós-moderna tal como a conhecemos deve acabar – seja na polarização financeira e na servidão dos devedores a uma nova elite oligárquica, ou no cancelamento da dívida, num Ano de Jubileu [perdão de dívidas] para resgatar a sociedade. Mas quando o governo diz que está analisando "todas" as opções, esta realidade não é uma delas. A primeira opção do secretário do Tesouro Henry Paulson foi comprar pacotes de hipotecas bichadas (obrigações de débito colateralizadas, CDOs) para salvar os investidores institucionais mais ricos de terem de assumir as perdas de suas más apostas. Quando esta não foi suficiente, ele surgiu com um "Plano B": dar dinheiro aos bancos. Mas enquanto a Inglaterra e os países europeus falavam em nacionalização de bancos ou ao menos em ter ações controladoras, o Sr. Paulson cedeu aos seus amigos de Wall Street e prometeu que a compra de ações pelo governo não seria real. Não haveria diluição dos atuais acionistas e o investimento do governo seria sem direito a voto. Para coroar a concessão aos seus compadres, o Sr. Paulson concordou até mesmo em não pedir aos executivos que abandonassem seus pára-quedas dourados, nem os seus exorbitantes bônus anuais ou salários. O Plano A (os US$ 700 bilhões para comprar lixo apoiado em hipotecas que o setor privado não comprará) fracassou parcialmente porque deixava as instituições financeiras evitarem estabelecer um valor justo aos pacotes de dívida que estavam vendendo. Ao invés de contar a verdade sobre sua posição financeira (remetendo seus ativos aos preços de mercado), elas podem "remeter a modelos", estilo Enron. Já vimos o resultado disso: uma semana inteira de mergulho nos preços de mercado das ações. A mídia chama isto de pânico, mas não há nada de irracional a respeito. Quem em sã consciência compraria títulos ou compraria participação num banco sem saber o que estes títulos valem? A fé em modelos matemáticos podres acabou. Assim, ainda aguardamos uma resposta pública para o problema de como quantificar as dívidas. O interesse econômico de quem irá prevalecer: o dos devedores, como tem sido o caso de forma progressiva ao longo dos últimos oito séculos; ou o dos credores, os quais lutaram contra isso a fim de criar uma economia neoliberal controlada pelo "departamento de bombeiros"? Não é tarde demais para decidir qual estrada tomar, mas os banqueiros e credores de Wall Street tomaram a dianteira em se posicionar. Ao verem a direção em que sopravam os ventos políticos, se mexeram para esvaziar os cofres do Tesouro antes das eleições de 3 de novembro, à semelhança do modo como populações medievais fugiam diante de uma horda de invasores mongóis sob Genghis Khan. "Estamos de mudança. Limpem os armários", assim como o Lehman Brothers esvaziou as suas contas bancárias externas, na Inglaterra e em outros lugares, pouco antes de declarar bancarrota, sacando o que podiam, passando informações aos seus melhores amigos. A justificativa era de que se tornara preciso um salvamento (bailout) para restaurar a confiança. Mas a semana seguinte mostrou que as afirmações eram falsas. O bailout não inverteu a tendência no mercado de ações como fora prometido. A média das taxas Dow Jones para a indústria caiu 2.200 pontos de quarta-feira, 1 de Outubro, até a sexta-feira seguinte, 10 de Outubro – oito dias de queda initerruptos, sem pausas para os habituais zigue-zagues habituais. O mergulho de sexta-feira foi de 100 pontos por minuto pelos primeiros sete minutos – caindo 690 pontos, para abaixo de 8.000. Cada 100 pontos era uma queda de mais de 1%, que se refletiu na NASDAQ. Nada conseguia sustentar a pressão de tantos americanos convertendo os seus fundos mútuos em dinheiro da noite para o dia e de tantos estrangeiros localizados em fusos horários adiantados colocando suas ações em posição de venda no mercado. Os investidores de curto prazo [short sellers] fizeram uma das maiores e mais rápidas fortunas de todos os tempos, e cobriram suas posições recomprando as ações que haviam acabado de vender. Isto empurrou os preços para cima até mesmo a posição positiva pouco antes das 10h30 quando George Bush começou a falar. Metade das ações financeiras mostravam ganhos – um sinal de que o time da "proteção contra a submersão" havia pulado para dentro. Mas o Sr. Bush nada disse de útil e as ações voltaram à queda livre, acabando por cair outros 128 pontos a despeito da proximidade da reunião do G7 no fim de semana seguinte. Não se falou sobre reduzir os níveis de endividamento – apenas de se dar mais dinheiro aos bancos, companhias de seguros e outros corretores de dinheiro, como se 'mexer as cordas' de alguma forma os levasse a conceder ainda mais empréstimos a uma economia já dominada pelo endividamento. Se o Congresso realmente quisesse restaurar a confiança, eis o que poderia ter feito: Primeiro, ajustar [a dívida] ao mercado, não ao modelo. Os investidores já não acreditam na contabilidade americana estilo Enron, nas agências de classificação de dívida ou em seguradoras de risco monolíticas. Eles não acreditam na honestidade dos bancos dos EUA acerca de suas posições financeiras. Preocupam-se com as acusações de fraude apresentadas por procuradores-gerais de onze estados contra emprestadores predatórios tais como o Countrywide e o Wachovia que o Citibank, o JPMorgan Chase e o Bank of America estavam tão ansiosos para comprar. Então, é tarde demais para o Congresso mudar de idéia e repelir as concessões? Se os US$ 700 bilhões entregues não estabilizaram o que se tornara irrecuperável para os pequenos investidores, fundos de pensão e mesmo o próprio setor financeiro, o que é que fez? O que é que o Fed tem feito enquanto a mídia não está olhando? FEDERAL RESERVE Vamos colocar a doação em perspectiva. Enquanto senadores e deputados sujeitos à escolha dos eleitores estavam debatendo os US$ 700 bilhões para os grandes contribuintes de Wall Street a ambos os partidos (admitido apenas para iniciantes, explicou o sr. Paulson), o Federal Reserve já havia dado ainda mais, sem qualquer discussão pública e sem que os principais meios de comunicação percebessando o. Desde que o Bear Stearns fracass,ou em março, o Federal Reserve tem utilizado as letras pequenas do seu estatuto para sair dos seus clientes normais (que supostamente seriam bancos comerciais), para dar a bancos de investimento, corretoras e agora grandes corporações, quase indiscriminadamente, uns US$ 875 bilhões em trocas de "dinheiro por lixo" (as estatísticas são divulgadas a cada semana no relatório H41 do Fed). Assim como Aladim oferecendo lâmpadas novas em troca de velhas, o Fed trocou títulos do Tesouro por hipotecas bichadas e outros títulos que corretoras e bancos de investimento não haviam tido tempo de penhorar na OPEP, ricos fundos soberanos asiáticos ou outros investidores. A imprensa louva o sr. Bernanke como "um estudioso da Grande Depressão". Se ele o fosse, deveria saber que o que levou ao colapso de 1929 foram as gritantes políticas de crédito do governo dos EUA para os governos aliados da Primeira Guerra Mundial. Isto criou uma situação em que o Federal Reserve tinha de proporcionar crédito fácil para manter taxas de juro artificialmente baixas de modo a encorajar investidores estado-unidenses a emprestar à Inglaterra e Alemanha, as quais utilizariam estes ingressos de dólares para pagar a suas armas entre aliados e as suas dívidas de reparações de guerra. O antecessor do sr. Bernanke, Alan Greenspan, promoveu o crédito fácil simplesmente por razões ideológicas, para enriquecer Wall Street permitindo-lhe vender mais dívida. Um estudioso da Grande Depressão entenderia os conflitos de interesse entre os bancos comerciais de varejo e os de investimentos no atacado e correotres de dinheiro que, em 1933, levaram o Congresso a aprovar o Glass-Steagall Act – conflitos desencadeados novamente quando o presidente Clinton apoiou o então presidente do Fed, Alan Greenspan, e o líder republicano (e herói de McCain) senador Phil Gramm, que lideraram a revogação desta lei abrindo as comportas para o jogo duplo financeiro que tem custado tanto à economia americana. Se o sr. Bernanke não conhece esta história, o seu comportamento é simplesmente o de um estudante oportunista da arte da auto-promoção política, do servilismo a Wall Street ao fazer campanha para uma última grande retirada fraude antes que administração Bush caia fora dos negócios. O Fed deu a Wall Street títulos do Tesouro recém impressos, acrescentados à dívida nacional a partir de ar rarefeito. Ele fez isto sem sentir qualquer necessidade de racionalização ao expondo absurdas imagens de relações públicas sobre como o governo pode "dar um lucro para os contribuintes". O presidente do Fed não é eleito democraticamente. Ele tradicionalmente é designado pelo setor financeiro de Wall Street que o Fed supostamente tem que regular, atua como seu lobista, dos interesses dos credores – os 10% no topo da população – contra os daqueles 90% da base que estão endividados. Esta "independência do banco central" é trombeteada como uma marca distintiva da democracia. Mas ela é não democrática precisamente por ser isolada do controle público. "A ERA DA OLIGARQUIA" O secretário do Tesouro Paulson não desfruta deste luxo. Presume-se que o Tesouro represente o interesse nacional, não aquele dos banqueiros – embora a sua chefia nestes dias saia de Wall Street e atue como o seu lobista. O Sr. Paulson apresentou sua doação quase totalitária de forma grosseira ao Congresso, na base do pegar-ou-largar, proclamando que se o Congresso não salvasse Wall Street de assumir as perdas de sua montanha de maus empréstimos, os bancos estavam dispostos a despedaçar a economia por rancor. "Por favor, não nos façam arruinar a economia", disse ele de fato. Tal como Margaret Thatcher costumava dizer enquanto vendia as jóias da coroa do governo britânico na década de 1980: Não há alternativa . Ao fazer esta aberta ameaça o Sr. Paulson comportou-se tão arrogantemente quanto o presidente do Lehman, Richard Fuld, quando tentou blefar a Coréia e outros investidores em perspectiva induzindo-os a pagar pela sua companhia o valor integral, fictíciamente alto, inscrito na contabilidade. (Seu blefe fracassou e o Lehman entrou em bancarrota, limpando seus acionistas, incluindo os empregados e administradores que possuíam 30% das suas ações). Depois de tudo, esta foi a alternativa. Em reação à mais estrondosa condenação pública de que se tem memória, o Congresso bancou o logro do Sr. Paulson. O que tornou o seu Programa de Socorro a Ativos Problemáticos (Troubled Asset Relief Program, TARP) de US$ 700 bilhões muito mais visível para a mídia do que as ações do Fed foi o envolvimento do Congresso, e isto num ano de eleições. O nível de mentiras e de argumentos falsos é portanto enorme – juntamente com umas poucas compensações e cortes fiscais para distrair a atenções. Antigamente o senador republicano Jeff Sessions, do Alabama, diria que "esta lei foi empacotada com um bocado de coisas muito populares para lhe dar mais força", de modo que (como explicou The New York Times), "ao invés de tomar partido por um salvamento de US$ 700 bilhões, agora os legisladores podiam dizer agora que votaram pelo aumento na proteção aos depósitos no banco da vizinhança, pelo alívio do imposto para contribuintes da classe média e por ajuda a escolas em áreas rurais onde o governo federal possui grande parte da terra". Deixados para trás enquanto os crentes nas virtudes dos mercados livres de Wall Street eram erguidos ao paraíso pelo "socialismo para os ricos", os devedores hipotecários, os devedores dos empréstimos para estudantes, a Corporação de Garantia do Benefício Pensionista (PBGC, descoberta em cerca de US$ 25 bilhões), a Corporação Federal de Seguro de Depósito (FDIC, descoberta em cerca de US$ 40 bilhões), assim como a Seguradora Social a qual, advertiram-nos, pode chegar a um déficit de um trilhão de dólares dentro de 30 ou 40 anos. Apenas os mais ricos têm sido beneficiados, não os eleitores, proprietários de casas e outros devedores. Ainda assim, o Congresso foi aterrorizado até agir na sexta-feira, 3 de outubro, porque uma semana antes, 26 de setembro, as ações haviam caído 777 pontos depois de congressistas corresponderem a um volume sem precedentes de protestos de eleitores contra o 'resgate'. "Estes idiotas podem cair", advertiu o presidente Bush enquanto lobistas de Wall Street atribuíam a culpa pela queda no mercado ao fracasso do Congresso em preservar o "sistema monetário", e especificamente os bancos e companhias de seguros que já haviam perdido o seu valor líquido e estavam mergulhando mais profundamente no terreno de liquidez negativa. Os líderes democratas Barney Frank e a presidente da Câmara, Nancy Pelosi, disseram, de fato: "Olhem o que fizeram! Vocês políticos irresponsáveis estão a exibir princípios, limpando as poupanças das pessoas que estão aplicadas em ações e ameaçando seus fundos de pensão. Se não derem às firmas de Wall Street dinheiro o bastante para cobrirem suas perdas de modo que todos ganhem, eles matarão a economia até encontrarem uma saída". Bem, eles não disseram estas palavras exatamente assim, mas esta foi basicamente a sua mensagem. Era certamente a mensagem de Wall Street: "Wall Street para a Economia: Seu dinheiro ou sua vida".MICHAEL HUDSON* Michael Hudson é ex-economista de Wall Street, especialista em balanços de pagamentos do Chase Manhattan. É professor na Universidade do Missouri, e foi assessor econômico do deputado democrata Dennis Kucinich. Escreveu o livro "Super imperialismo: A Estratégia Econômica do Império Americano".** Artigo originalmente publicado sob o título 'Resgate para os poucos, escravidão da dívida para a maioria: O Congresso deveria nos salvar do salvamento' (Rescue for the Few, Debt slavery for the Many: Congress should bail out of the Bailout), no site Counterpunch.org

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