A “História das Agriculturas no Mundo”,
de Marcel Mazoyer e Laurence Roudart (tradução, do original em francês, de
Cláudia F. Falluh Balduino Ferreira, Ed. Unesp, 2010) é uma obra colossal. Nem tanto
por suas mais de 550 páginas. Mais pela profundidade e quantidade de dados que
abarcam as várias épocas do cultivo agrícola da Humanidade, desde o neolítico
até os tempos atuais.
Há nesse último e mais recente estágio,
no entanto, um paradoxo: as mudanças na produção agrícola, desde a década de 50
e 60 do século XX, e, sobretudo após 1991, foram capazes de um estupendo
aumento de produtividade – com a consequência de que os preços das mercadorias
agrícolas tiveram uma imensa queda. Mas isso, ao invés de reduzir a fome no
mundo, fez com que aumentasse o número de pessoas na miséria, com desnutrição,
tornando mais distante a agricultura mais desenvolvida daquela menos
desenvolvida. Por consequência, aumentando também a distância entre os países
centrais e os países da periferia.
Trata-se do problema do “agronegócio” e
de suas consequências devastadoras para o conjunto da agricultura e do conjunto
dos países.
No trecho que escolhemos – o prefácio da
obra, que é aprofundado e estendido nos dois últimos capítulos do livro – os
autores traçam um retrato da situação.
Em outras oportunidades, tratamos da
questão, mas sobretudo sob o prisma da crise alimentar aguda (ver, p. ex., HP
25/04/2008 e 09/05/2008).
Trata-se, realmente, de uma tragédia –
ao mesmo tempo em que a produção foi multiplicada e os preços baixaram, a fome
aumentou.
É interessante a conclusão dos autores:
“... a ideia que fazemos das causas e dos
remédios para a crise contemporânea é bem diferente da ideia, hoje
politicamente dominante, de que os males deste mundo proviriam essencialmente
da concorrência insuficiente para a qual a melhor política econômica seria
sempre a de facilitar essa concorrência, limitando-se a atenuar seus efeitos
mais insuportáveis, considerados como passageiros. Nossa posição se aproxima
das análises, cada vez mais numerosas, de que somente uma política mundial
coordenada de reorganização equitativa dos comércios internacionais, dos
sistemas monetário e financeiro internacional, visando ao desenvolvimento
equilibrado de todos os países, pode remediar uma crise que é mais mundial que
nunca” (M. Mazoyer e L. Roudart, op. cit.,
pp. 553-554).
Embora os autores não o digam, é
evidente que isso implica numa transformação nos países, ou seja, em
transformações nacionais.
Pois, se há algo que a situação crítica
da agricultura mundial expõe de forma eloquente é que, na época do imperialismo
– sobretudo o imperialismo atual, o chamado neoliberalismo – mesmo quando há
algum avanço das forças produtivas (e sempre há algum, ainda que essas forças
estejam travadas), isso redunda em riqueza para muito poucos e miséria para
muitos (neste caso, pelo menos 1,5 bilhão de pessoas, provavelmente mais, pois
os números dos autores vão até 2010).
Este é exatamente o problema: esses
avanços de produtividade estão submetidos ao domínio de monopólios financeiros
extremamente vorazes e criminosos.
Há muitas questões científicas e
teóricas envolvidas. Porém, no extrato que apresentamos da obra de Mazoyer e
Roudart, preferimos nos ater, na medida do possível, aos fatos.
Marcel Mazoyer é engenheiro-agrônomo,
professor e pesquisador, foi titular da cadeira de agricultura comparada e
desenvolvimento agrícola do Institut National Agronomique Paris-Grignon. É professor emérito do Institut des Sciences et Industries du Vivant et de l'Environnement, escola de engenharia conhecida como AgroParisTech, que abarcou a primeira instituição.
A professora Laurence Roudart, que foi
aluna de Marcel Mazoyer, é Mestre de Conferências de Economia Política
Agrícola, na mesma cátedra.
Agradecemos a Werner Rempel ter chamado
a nossa atenção para essa obra – e, como sempre, gentilmente, nos presenteado
com ela.
C.L.
MARCEL MAZOYER E LAURENCE ROUDART
Nesse princípio de século XXI, com os
aproximadamente seis bilhões de seres humanos com que conta o planeta, por
volta da metade vive na pobreza, com um poder aquisitivo equivalente a menos de
dois dólares americanos por dia. Perto de dois bilhões sofrem de graves
carências de ferro, iodo, vitamina A, de outras vitaminas ou minerais [NOTA:aproximadamente
1,5 bilhão de indivíduos têm carência de ferro, 740 milhões têm carência de
iodo, 200 milhões de vitamina A, de acordo com a Organização das Nações Unidas
para a Alimentação e a Agricultura, normalmente designada por sua sigla em inglês,
FAO (Food and Agriculture Organization)].
Mais de um bilhão de pessoas não têm
acesso à água potável e por volta de 840 milhões são vítimas de subnutrição, o
que significa que elas nem sempre dispõem de ração alimentar suficiente para
cobrir suas necessidades energéticas básicas, em outras palavras, elas têm fome
quase todos os dias [NOTA: De acordo com a FAO, há por volta de 800
milhões de pessoas subnutridas nos países em desenvolvimento, ou seja, quase um
a cada cinco indivíduos, 30 milhões nos países em transição (anteriormente com
economia planificada) e 10 milhões nos países desenvolvidos, Esses números, que
são incertos, devem ser considerados como ordens de grandeza.].
Quanto aos surtos de fome que eclodem
aqui e ali quando há uma seca, inundação, tempestade, doença das plantas, dos
animais ou dos homens, ou ainda da guerra, elas não deixam de ser, por outro
lado, a consequência última da pobreza e da subnutrição. Na verdade, esses
acidentes climáticos, biológicos ou políticos levam à fome apenas as regiões do
mundo em que amplas camadas da população sofrem já de uma pobreza e de uma
insegurança alimentar tão grandes que não dispõem dos meios para lutar de
maneira eficaz contra essas catástrofes e suas consequências.
Essa situação dramática, que não é nova,
não está, tampouco, em vias de melhorar. Certamente, a parte da
população subnutrida dentro da população mundial total diminuiu no decorrer das
três últimas décadas do século XX, mas o número de
pessoas subnutridas no mundo não baixou nem um pouco. É por isso que mais de
oitenta chefes de Estado e de governo, reunidos em Roma em 1996 para a Cúpula
Mundial da Alimentação, comprometeram-se a “realizar um esforço constante a fim
de erradicar a fome em todos os países e, de imediato, de reduzir pela metade o
número de pessoas subnutridas daqui até mais tardar 2015”. Isso levava a
considerar que o mundo contaria ainda com cerca de 400 milhões de pessoas
subnutridas em 2015. Mas os meios mobilizados para essa finalidade, não tendo
sido nem tão significativos nem tão eficazes quanto o previsto, cinco anos
depois, em 2001, foi preciso reconhecer que o mundo contaria ainda com 600 a
700 milhões de subnutridos em 2015 e que, nesse ritmo, seria necessário mais de
um século para ver desaparecer essa catástrofe.
Dessa forma, mesmo reforçados, os meios
convencionais de luta contra a fome mostraram-se, uma vez mais, incapazes de
suplantá-la em um prazo suficientemente curto para ser moralmente aceitável,
socialmente suportável e politicamente tolerável. Para reduzir a pobreza
extrema, que chega até a fome e, às vezes, à penúria e à morte, não basta
tratar dos sintomas mais alarmantes desses males, é preciso combater suas
causas profundas e, para isso, é preciso apelar para outras análises e outros
meios.
Para começar, é preciso levar em
consideração o fato essencial de que aproximadamente três quartos dos
indivíduos subnutridos do mundo pertencem ao mundo rural. Homens do campo
pobres, dentre os quais encontramos, majoritariamente, camponeses
particularmente mal equipados, instalados em regiões desfavoráveis e em
situação difícil, assim como trabalhadores agrícolas, artesãos e comerciantes
que vivem em contato com eles e que são tão pobres quanto eles. Quanto aos
outros subnutridos, muitos são ex- -camponeses recentemente forçados pela
miséria a irem para os campos de refugiados ou periferias urbanas subequipadas
e subindustrializadas, nas quais eles ainda não puderam encontrar meios de
subsistência satisfatórios.
E como o número de pobres e famintos dos
campos não diminui em nada, mesmo que ele caia anualmente em muitas dezenas de
milhões de pessoas em virtude do êxodo rural, é preciso deduzir daí que um
número mais ou menos igual de novos pobres e famintos forma-se todo ano nos
campos.
A maioria das pessoas que tem fome no
mundo não é, portanto, de consumidores urbanos compradores de alimento, mas de
camponeses vendedores de produtos agrícolas. E seu número elevado não é uma
simples herança do passado, mas o resultado de um processo, bem atual, de
empobrecimento extremo de centenas de milhões de camponeses sem recursos.
Para explicar esse processo, trataremos
das questões a seguir: qual a dimensão das desigualdades entre as diferentes
agriculturas do mundo; como a revolução agrícola contemporânea, desenvolvida
por uma minoria de agricultores dos países desenvolvidos e de alguns países em
desenvolvimento, multiplicou de maneira enorme essas desigualdades; por que a
revolução verde, desenvolvida por aproximadamente dois terços dos agricultores
dos países em desenvolvimento, reduziu apenas parcialmente essas desigualdades;
como a baixa tendencial dos preços agrícolas reais, resultante dessas
revoluções agrícolas, bloqueou o desenvolvimento e está empobrecendo ao extremo
mais de um terço dos camponeses do planeta.
AGRICULTURAS MUITO DESIGUAIS
Podemos medir a produtividade
bruta do trabalho agrícola pela produção de cereais ou de equivalente-cereal [quantidade
de cereais que possuem o mesmo valor calórico que a produção agrícola
considerada] por trabalhador agrícola e por ano. Em pouco mais de meio
século, a relação entre a produtividade da agricultura menos produtiva do
mundo, praticada exclusivamente com ferramentas manuais (enxada, pá, facão,
faca, ceifadeira, foice...) e a agricultura mais bem equipada e produtiva do momento
realmente se acentuou: passou de 1 contra 10 no período do entre-guerras, para
1 contra 2.000 no final do século XX.
REVOLUÇÃO
AGRÍCOLA CONTEMPORÂNEA
De fato, no decorrer da segunda metade
do século XX, a revolução agrícola contemporânea (elevada motorização-mecanização,
seleção de variedades de plantas e de raças de animais com forte potencial de
rendimento, ampla utilização dos fertilizantes, dos alimentos concentrados para
o gado e produtos de tratamento das plantas e dos animais domésticos) progrediu
vigorosamente nos países desenvolvidos e em alguns setores limitados dos países
em desenvolvimento.
Os
produtos agrícolas e alimentares não são mercadorias como as outras: seu preço
é o da vida e, abaixo de um certo patamar, o da morte
Nos países desenvolvidos, os
agricultores, que já eram relativamente produtivos, beneficiaram-se de
políticas de apoio ao desenvolvimento agrícola, assim como de preços agrícolas
reais que, no início do período considerado, eram muito mais elevados que os atuais,
ainda que pudessem investir e progredir ao máximo. Mas, no final das contas,
são menos de 10% dos grandes estabelecimentos agrícolas que conseguiram superar
todas as etapas dessa revolução. Hoje, as mais bem equipadas, as mais bem
dimensionadas e as mais bem colocadas entre elas atingem uma produtividade
bruta da ordem de 2.000.000 kg de equivalente-cereal por trabalhador e por ano
(200 ha/trabalhador x 10.000 kg/ha = 2.000.000 kg/trabalhador). Os ganhos de
produtividade agrícola obtidos dessa forma foram tão rápidos e tão elevados que
ultrapassaram os da indústria e do setor de serviços. Disso resultou uma forte
queda dos preços agrícolas reais: de acordo com os produtos, esses preços foram
divididos por 2, 3 ou 4 ao longo da segunda metade do século XX.
Consequentemente, durante esse período, mais de 90% dos estabelecimentos
agrícolas menos favorecidos tiveram seu desenvolvimento bloqueado e
empobreceram em virtude dessa baixa dos preços, a tal ponto que, umas após as
outras, deixaram de existir e alimentaram com mão de obra a indústria e o setor
de serviços em expansão.
Nos países em desenvolvimento, a maioria
dos camponeses não encontrou formas de acesso à motorização-mecanização, muito
dispendiosa. Em algumas regiões, no entanto (América Latina, Oriente Médio,
África do Sul...), alguns grandes empresários agrícolas, que dispunham de
milhares de ha e que utilizavam trabalhadores agrícolas diaristas muito mal
pagos aproveitaram-se da inflação e dos baixos preços agrícolas internacionais,
relativamente elevados da primeira metade dos anos 1970, assim como dos
créditos vantajosos, para, por sua vez, equiparem-se. Hoje, os mais bem
sucedidos desses grandes estabelecimentos agrícolas têm uma produtividade do
trabalho tão elevada quanto a dos grandes estabelecimentos agrícolas
norte-americanos ou do oeste-europeu mais bem equipados, mas com um custo de
mão de obra infinitamente menor.
REVOLUÇÃO VERDE
Ainda nos países em desenvolvimento, a
partir dos anos 1960, a revolução verde, uma variante da revolução agrícola
contemporânea desprovida de motorização-mecanização, desenvolveu-se muito mais
amplamente. Baseada na seleção de variedades com bom rendimento potencial de
arroz, milho, trigo, soja e de outras grandes culturas de exportação, baseada
também numa ampla utilização de fertilizantes químicos, dos produtos de
tratamento e, eventualmente, em um eficaz controle da água de irrigação e da
drenagem, a revolução verde foi adotada pelos agricultores que eram capazes de
adquirir esses novos meios de produção e nas regiões favorecidas, onde era
possível rentabilizá-los. Ressaltamos que em muitos países, os poderes públicos
favoreceram intensamente a difusão dessa revolução, comandando políticas de
incentivo aos preços agrícolas, de subvenções aos insumos, de bonificação dos
juros de empréstimo e de investimentos em infraestruturas de irrigação,
drenagem e transporte. Dessa forma, hoje, um agricultor que utilize plenamente
os meios da revolução verde pode atingir uma produção bruta do trabalho de
cerca de 10.000 kg do equivalente-cereal se ele dispuser apenas de ferramentas
manuais (1 ha/trabalhador x 10.000 kg/ha), de cerca de 50.000 kg se ele
dispuser de equipamentos de tração animal (5 ha/trabalhador x 10.000 kg/ha), e
mesmo mais se ele puder realizar diversas colheitas por ano.
AGRICULTURAS ESQUECIDAS
Assim, muitos camponeses dos países em
desenvolvimento nunca tiveram acesso aos meios de produção de uma ou outra
dessas revoluções agrícolas. Dessa forma, a motorização-mecanização está
praticamente ausente, e as sementes selecionadas, os fertilizantes, os
agrotóxicos só são pouco ou não são utilizados em extensas zonas de culturas
pluviais ou sumariamente irrigadas das florestas, savanas, estepes
intertropicais da África, da Ásia e da América Latina. E mesmo nas regiões que
assimilaram amplamente uma ou outra dessas duas revoluções, muitos camponeses
nunca puderam adquirir os novos meios de produção e progredir em rendimento e
em produtividade. Eles, portanto, também foram empobrecidos pela baixa dos
preços agrícolas reais, e ainda sofreram, por vezes, inconvenientes resultantes
dessas duas revoluções (poluições diversas, baixa do nível de lençóis
freáticos, salinização dos solos irrigados e mal drenados...).
Consequentemente, centenas de milhões de
camponeses continuam hoje a trabalhar com ferramentas estritamente manuais, sem
fertilizantes nem produtos de tratamento e com variedades de plantas que não
foram objeto de pesquisa e de seleção sistemática (milheto, quinoa, eleusine,
batata doce, ocá, taro, inhame, banana prata, mandioca...). Os rendimentos
obtidos nessas condições são inferiores a 1.000 kg de equivalente-cereal por
hectare (por exemplo, o rendimento médio do milheto no mundo atual é de, quando
muito, 800 kg por hectare). E como um instrumental manual mal permite cultivar
mais de um hectare por trabalhador, a produtividade bruta não ultrapassa 1.000
kg de equivalente-cereal por ativo e por ano (1 ha/trabalhador x 1.000 kg/ha).
AGRICULTURA MANUAL
No fim das contas, para uma
população agrícola ativa mundial de um bilhão e trezentos milhões de pessoas,
ou seja, a metade da população ativa total do mundo, contamos hoje, quando
muito, com apenas 28 milhões de tratores [de acordo com a AOSTAT, FAO, 1999],
ou seja, algo em torno de 2% do número de ativos agrícolas! Notemos que a
população agrícola total mundial (ativa e não ativa) é de aproximadamente 3
bilhões de pessoas, ou seja, a metade da humanidade.
Além disso, podemos estimar que por
volta de dois terços desses ativos beneficiaram-se da revolução verde. Aproximadamente
a metade deles dispõe da tração animal, ao passo que os outros continuam
trabalhando com ferramentas manuais. Consequentemente, um terço da população
agrícola do mundo, ou seja, mais de 400 milhões de trabalhadores ativos (o que
corresponde a mais de um bilhão de pessoas a serem alimentadas), trabalham não
somente com ferramentas estritamente manuais, mas ainda sem fertilizantes, nem
alimento do gado, nem agrotóxicos, nem variedades de plantas ou raça de animais
selecionadas.
DESIGUALDADES DE ACESSO À TERRA
Além disso, em muitos países
ex-coloniais (América Latina, África do Sul, Zimbábue...) ou ex-comunistas
(Ucrânia, Rússia, entre outros) que não tiveram reforma agrária recente, a
maioria desses camponeses mal equipados são mais ou menos destituídos de terra
pelos grandes estabelecimentos agrícolas de muitos milhares de dezenas ou
dezenas de milhares de hectares, estabelecimentos que são privados ou públicos,
ou em vias de privatização. Esses pequenos camponeses dispõem de uma superfície
ainda inferior àquela que poderiam cultivar com suas ferramentas simples, e
inferior àquela que lhes seria necessária para cobrir as necessidades de
autoconsumo de suas famílias. Esses camponeses “minifundistas” são, portanto,
obrigados a procurar trabalho dia após dia nos grandes estabelecimentos
agrícolas “latifundistas”, com salários de 1 a 2 dólares por dia.
RAZÕES DO EMPOBRECIMENTO EXTREMO
Os aumentos de produtividade e de
produção resultantes da revolução agrícola contemporânea e da revolução verde
não provocaram somente uma forte baixa dos preços agrícolas reais nos países
envolvidos: elas também permitiram a alguns desses países liberarem excedentes
exportáveis a baixos preços. Porém, as trocas internacionais de produtos
agrícolas de base recaem somente sobre uma pequena fração da produção e do
consumo mundiais (algo em tomo de 12% para os cereais, por exemplo). Os
mercados correspondentes são, portanto, mercados residuais, que são
constituídos de excedentes difíceis de vender, a não ser por preços
particularmente baixos. Com esses preços, mesmo os produtores beneficiários da
revolução agrícola ou da revolução verde só podem ganhar parcelas de mercado,
ou se manter, se contarem com alguns latifundistas agroexportadores
sul-americanos, zimbabuenses e, agora, ucranianos, russos..., que não somente
estão bem equipados mas que, além disso, dispõem de vastos espaços pouco
dispendiosos e de uma mão de obra que está entre as mais baratas do mundo.
Hoje, nesse tipo de latifúndio, um trabalhador agrícola que ganha menos de
1.000 dólares por ano pode produzir mais de 1.000.000 kg de cereais, o que
reduz o custo da mão de obra por quilo de cereais a menos de um milésimo de
dólar (1.000 dólares/ativo/ano divididos por 1.000.000 de kg/ativo/ano).
Consequentemente, o preço da tonelada de cereais exportáveis por essas regiões
é inferior a 100 dólares americanos.
Com esse preço, uma grande quantidade de
agricultores americanos ou europeus teria uma renda do trabalho nula ou
negativa. Eles não poderiam, portanto, nem ganhar parcelas de mercado, nem
resistir a essas importações, nem se manter em atividade se não pertencerem a
países desenvolvidos com altas rendas e preocupados com sua soberania alimentar
e onde, consequentemente, beneficiar-se-iam de incentivos públicos bastante
significativos.
Enfim, em certos países em
desenvolvimento, no sudeste asiático particularmente (Tailândia, Vietnã,
Indonésia...), o aumento da produção devido à revolução verde combina-se com
altos níveis de rendas e de salários locais tão baixos que esses países
tornaram-se exportadores de arroz enquanto a subnutrição arruína os campos.
Mas, para a maioria dos camponeses do
mundo, os preços internacionais dos gêneros alimentícios de base são
excessivamente baixos para permitir-lhes viver de seu trabalho e renovar seus
meios de produção e, portanto, ainda menos para permitir-lhes investir e
progredir. Porém, devido à baixa dos custos de transporte e à liberalização
crescente das trocas agrícolas internacionais, camadas sempre novas do
campesinato subequipado, instalado em regiões desfavorecidas, com pouca
disponibilidade de terras e pouco produtivo, são confrontadas com a
concorrência de gêneros alimentícios a preços muito baixos provenientes dos
mercados internacionais. Essa concorrência desencadeia o bloqueio do
desenvolvimento e o empobrecimento deles, chegando a levá-los à pobreza extrema
e à fome.
Para melhor compreender esse processo,
consideremos um cerealicultor sudanês, andino ou himalaico, que disponha de um
instrumental manual e produza 1.000 kg de grão líquido (ou seja, subtraindo-se
as sementes utilizadas), sem fertilizantes nem produtos fitossanitários. Há
mais ou menos cinquenta anos, tal cerealicultor recebia o equivalente a 300
dólares (valor referente ao ano de 2001) por tonelada de cereais: ele devia,
então, vender 200 kg para renovar seus equipamentos, suas vestimentas etc., e
restavam-lhe 800 kg para alimentar modestamente quatro pessoas; privando-se um
pouco, ele podia até vender 100 kg de cereais a mais para comprar uma
ferramenta nova, mais eficaz. Há aproximadamente 20 anos, ele não recebia mais
do que o equivalente a 200 dólares (de 2001) por tonelada: ele devia, então,
vender 400 kg para renovar seu equipamento e restavam-lhe apenas 600 kg para
alimentar, dessa vez insuficientemente, quatro pessoas; ele não podia mais,
portanto, comprar novas ferramentas. Enfim, hoje, ele não recebe mais do que
100 dólares por tonelada de cereais: ele deveria vender mais de 600 kg para
renovar seu material, o que é obviamente impossível, dado que não seria
possível alimentar quatro pessoas com 400 kg de cereais. Na realidade, com esse
preço, ele não pode nem renovar completamente suas ferramentas, contudo
irrisórias, nem alimentar-se satisfatoriamente e renovar sua força de trabalho:
ele está condenado, portanto, ao endividamento e ao êxodo rumo às favelas
subequipadas e subindustrializadas em que reinam o desemprego e os baixos salários.
É
preciso romper com a liberalização das trocas, que tende a alinhar por toda
parte os preços sobre aqueles mais baratos dos exportadores de excedentes
Nessas condições, compreende-se porque
as políticas de desenvolvimento que consistem em levar adiante a revolução
agrícola contemporânea e a revolução verde nas regiões favorecidas, e as
políticas alimentares que consistem em suprir cidades e povoados com gêneros
alimentícios a preços sempre mais baixos, são particularmente contraindicadas
para lutar contra a fome. De fato, essas políticas empobrecem ainda mais os
camponeses e os mais pobres, que constituem, como vimos, a maioria das pessoas
subnutridas do mundo.
PERSPECTIVAS
Em 2050, nosso planeta contará com
aproximadamente 9 bilhões de seres humanos (entre 8 e 11 bilhões) segundo as
últimas estimativas das Nações Unidas publicadas em 2001. Apenas para alimentar
corretamente uma determinada população, sem subnutrição nem carência, a
quantidade de produtos vegetais destinados à alimentação dos homens e dos
animais terá que dobrar no mundo inteiro. Ela deverá quase triplicar nos países
em desenvolvimento, mais que quintuplicar na África e mesmo aumentar dez vezes
mais em muitos países desse continente (Philippe Collomb, Une
voie étroite pour la sécurité alimentaire [Uma
via estreita para a segurança alimentar], 1999).
Para obter um aumento da produção
agrícola tão significativo, a atividade agrícola deverá ser estendida e
intensificada em todas as regiões do mundo em que isso for sustentavelmente
possível.
POSSIBILIDADES LIMITADAS
Para tanto, alguns pensam em novos
progressos da revolução agrícola contemporânea e da revolução verde. Mas, nas
regiões em que essas revoluções já estão muito avançadas, parece difícil
continuar a aumentar a produtividade por meio de um maior uso de meios de
produção convencionais. De fato, em muitos lugares, abusos de utilização foram
cometidos, que levaram a inconvenientes, até mesmo a inversões de ordem
ecológica, sanitária ou social: diversos tipos de poluições, prejuízos à
qualidade e à segurança sanitária dos alimentos, concentração excessiva das
produções e abandono de regiões inteiras, degradação dos solos e do ambiente...
Nessas condições, para restabelecer a qualidade do meio-ambiente ou dos
produtos, será preciso, sem dúvida, impor restrições ao emprego desses meios de
produção, o que não coincidirá com novos aumentos da produtividade.
No entanto, as regiões em que a
revolução agrícola contemporânea e a revolução verde já penetraram, sem nelas
terem se desenvolvido plenamente, detêm, sem dúvida, um real potencial de
crescimento da produção. Mas a mobilização desse potencial por um uso crescente
de fertilizantes e agrotóxicos defrontar-se-á com os mesmos inconvenientes que
nas regiões anteriores. Quanto à expansão da motorização-mecanização, ela não é
em si mesma um meio para aumentar significativamente os rendimentos e a
produção. Além do mais, ela custa tão caro que é sempre inacessível à maioria
dos camponeses dos países em desenvolvimento, ainda que sua adoção pelas
grandes propriedades que possuem mão de obra assalariada reduzirá em 90% as
necessidades de mão de obra agrícola, o que aumentará ainda mais a miséria
rural, o êxodo e o desemprego.
Com relação aos organismos geneticamente
modificados (OGM), último avatar dessas duas revoluções agrícolas, eles também
não têm condições de restabelecer milagrosamente uma situação agrícola e
alimentar mundial tão desastrosa. Na realidade, admitindo que o desenvolvimento
de OGM não seja essencialmente uma forma de se apropriar do patrimônio genético
das plantas e dos animais; que os riscos ambientais e sanitários que eles podem
comportar sejam eliminados ou inexistentes; que as esperanças e as ambições que
eles alimentam triunfem sobre as reações de medo e recusa que eles suscitam;
admitindo, ainda, que a elaboração de OGM resistentes aos inimigos das
plantações, tolerantes diante de condições climáticas extremas e solos menos
propícios, seja mais rápida que a seleção, no local, das espécies e das
variedades nativas apropriadas às condições, às necessidades e às
possibilidades do conjunto de camponeses locais, fato é que o desenvolvimento
de OGM custa muito caro e que o controle preventivo de sua inocuidade ecológica
e alimentar custa mais caro ainda. Tão caro que essas pesquisas são
essencialmente orientadas em função das necessidades dos produtores e dos
consumidores com poder aquisitivo [NOTA: Em
1999, mais de 70% dos OGM cultivados no mundo tinham por vantagem particular o
fato de serem tolerantes aos herbicidas totais (isto é, prejudiciais a qualquer
planta), permitindo, assim, utilizar esses herbicidas sem se preocupar com os
OGM em questão. Porém, esse tipo de herbicida só é pouco ou não é utilizado
pela maioria dos camponeses pobres. Ainda em 1999, aproximadamente 80% das
superfícies cultivadas com OGM no mundo dedicavam-se à produção de milho e de
soja, essencialmente destinadas à alimentação animal nos países
desenvolvidos.].
Tão caro que as sementes de OGM e os
meios de produção necessários para valorizá-los não serão mais acessíveis aos
camponeses pobres das regiões em dificuldades do que eram os meios de produção
da revolução verde.
No final das contas, nem os OGM, nem as
sementes selecionadas de maneira clássica, nem os outros meios técnicos que a
ele estão associados podem erradicar a pobreza extrema, inclusive levando-os à
fome, dos camponeses mal equipados das regiões em dificuldades: com os atuais
preços de venda dos produtos agrícolas, esses homens do campo têm menos do que
nunca condições de comprar e rentabilizar tais meios.
TROCAS AGRÍCOLAS INTERNACIONAIS
Para permitir que todos os
camponeses do mundo construam e explorem sustentavelmente ecossistemas
cultivados capazes de produzir, sem danos ao meio ambiente, um máximo de
gêneros alimentícios seguros e de qualidade, é imprescindível parar a guerra
dos preços agrícolas internacionais. É preciso romper com a liberalização das
trocas, que tende a alinhar por toda parte os preços sobre aqueles mais baratos
dos exportadores de excedentes. Como vimos, tais preços empobrecem e deixam
famintos centenas de milhões de moradores do campo, que intensificam o fluxo de
êxodo rural, o desemprego e a miséria urbana, reduzindo, assim, para bem abaixo
das necessidades a demanda daqueles que têm poder aquisitivo. Além disso, ao
excluir da produção regiões inteiras e milhões de camponeses e ao desencorajar
a produção daqueles que permanecem, esses preços limitam a produção agrícola a
muito aquém do que seria possível com as técnicas de produção sustentáveis
conhecidas em nossos dias. Tais preços, que engendram por sua vez o subconsumo
alimentar e a subutilização dos recursos agrícolas, são, portanto, duplamente
malthusianos. Além do mais, eles pressionam negativamente o meio-ambiente, a
segurança sanitária e a qualidade dos produtos. Os produtos agrícolas e alimentares
não são mercadorias como as outras: seu preço é o da vida e, abaixo de um certo
patamar, o da morte.
Para promover as agriculturas camponesas
sustentáveis, capazes de assegurar, em quantidade e em qualidade, a segurança
alimentar de 6 e, muito em breve, 9 bilhões de seres humanos, é preciso, antes
de tudo, garantir aos camponeses preços suficientemente elevados e estáveis
para que eles possam viver dignamente de seu trabalho: é o preço de nosso
futuro. Para essa finalidade, é necessário implantar uma organização dos
intercâmbios agrícolas internacionais muito mais sustentável e eficaz que a
atual. Uma nova organização cujos princípios seriam os seguintes: estabelecer
grandes mercados comuns agrícolas regionais, reagrupando países que tenham
produtividades agrícolas bastante próximas (oeste da África, sul da Ásia, oeste
europeu, leste europeu, norte da África e Oriente próximo etc.); proteger esses
mercados regionais contra qualquer importação de excedentes agrícolas com
baixos preços pelos impostos de exportação variáveis, garantindo aos camponeses
pobres das regiões desfavorecidas preços satisfatórios e suficientemente
estáveis para permitir-lhes viver de seu trabalho e também investir e se
desenvolverem; negociar, produto por produto, acordos internacionais fixando,
de forma sustentável, um preço médio para a compra do produto nos mercados
internacionais, assim como a quantidade e o preço de exportação consentidos a
cada um desses grandes mercados e, se for o caso, a cada país.
Além disso, nos países em que a terra é
monopolizada por uma minoria de latifundistas, será preciso ainda implementar
verdadeiras reformas agrárias e legislações fundiárias que garantam o acesso à
terra e à segurança do arrendamento ao maior número possível.
Dentro desses grandes mercados, as
desigualdades de renda entre zonas agrícolas mais ou menos favorecidas poderão
ser corrigidas pelo imposto fundiário diferencial e as desigualdades de renda
entre os grandes estabelecimentos agrícolas mais ou menos providos de meios de
produção poderão ser corrigidos pelos impostos sobre a renda.
Enfim, será importante reforçar os
serviços públicos de pesquisa agrícola, nacionais e internacionais, e
orientá-los de maneira que eles respondam prioritariamente às necessidades dos
camponeses das regiões em dificuldades, com a preocupação da viabilidade
ecológica dos ecossistemas cultivados (renovação da fertilidade...) assim como
de sua viabilidade econômica e social (aumento e repartição sustentável do
bem-estar...).
***
Algumas das análises e propostas deste
livro vão de encontro ao pensamento econômico e político dominante. Entretanto,
elas foram longamente partilhadas e continuam a ganhar espaço e público. As
coisas acontecem rapidamente, infelizmente, e tendem a corroborar nossos
dizeres, de forma que mudar globalmente de políticas agrícolas e alimentares
parece cada dia mais urgente. Mais acessível, também, se julgarmos pelos bem
numerosos debates com representantes de sindicatos agrícolas, de organizações
não-governamentais, governamentais e internacionais, de universidades e de
centros de pesquisa, na França e em diversos outros países que somos convidados
a mediar.
http://www.horadopovo.com.br/
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