sábado, 4 de julho de 2015

A espoliação da Grécia pelos bárbaros, isto é, os bancos europeus e dos EUA


Em março, a presidente do Parlamento Helênico, deputada Zoe Konstantopoulou, do Syriza, ao formar o Comitê da Verdade sobre a Dívida Pública da Grécia, convidou para fazer parte dele a auditora fiscal brasileira Maria Lúcia Fatorelli.
Os demais membros do Comitê são Éric Toussaint, da França, Cephas Lumina, de Zâmbia, Giorgos Mitralias e a própria Zoe Konstantopoulou.
O texto que publicamos hoje, aparecido primeiramente no site da Auditoria Cidadã da Dívida, coordenado por Maria Lúcia, é interessante porque revela os problemas financeiros da Grécia, sobretudo, como problemas financeiros dos bancos europeus que estão sendo descarregados sobre o povo grego.
A esse propósito, a autora desenvolve o conceito de “sistema da dívida”, definido “a partir da constatação, por meio de diversas auditorias cidadãs em diferentes instâncias, do uso do instrumento do endividamento público às avessas, funcionando como uma ferramenta de subtração de recursos públicos em vez de aportar recursos ao Estado, operando por meio de uma série de engrenagens que relacionam o sistema político, o sistema legal, o modelo econômico baseado em planos de ajuste fiscal, a grande mídia e a corrupção”.

Não são problemas como os da época da ditadura, em que, até a crise dos EUA no começo dos anos 80, com o aumento extorsivo dos juros sobre os pagamentos de empréstimos externos, o endividamento serviu para dotar o Estado de recursos que fizeram o país crescer durante certo tempo.
Agora, a dívida privada dos bancos, transferidas para os Estados nacionais, espolia o conjunto da população, sem que sirva em nada ao crescimento ou a qualquer investimento produtivo.
Nem mesmo se pode dizer que é uma “socialização” dos prejuízos dos bancos, em que a população paga pelos prejuízos privados. Mais do que isso, o conjunto da dívida dos bancos e outros rentistas, sob a forma de “ativos financeiros tóxicos”, é empurrada, inteira, para o povo pagar.
No Brasil, embora de forma diferente, temos algo que, em essência, corresponde a isso: os perpétuos juros altos levaram a dívida bruta do governo a R$ 3 trilhões, 538 bilhões e 708 milhões (62,5% do PIB – v. BC, Relatório de Política Fiscal, maio 2015, Quadro XVII).
O escandaloso não é a dívida em si, mas o fato de que ela não corresponde à realização alguma, seja de uma ponte, uma ferrovia, uma rodovia, um aeroporto ou uma simples creche em uma cidade qualquer do país. Ela corresponde apenas à pilhagem financeira do país por bancos, fundos, quase todos estrangeiros, e por uma oligarquia rentista que rompeu seus laços com a nação.
É sobre isso, na realidade grega, o artigo de Maria Lúcia Fatorelli.
C.L.
Tragédia grega esconde segredo de bancos privados
 
MARIA LÚCIA FATORELLI
A Grécia está enfrentando um tremendo problema de dívida pública e uma crise humanitária. A situação atual é muitas vezes pior do que a de 2010, quando aTroika – FMI, Comissão Europeia e Banco Central Europeu – impôs seu “plano de resgate” ao país, justificado pela necessidade de apoiar a Grécia. Na realidade, tal plano tem sido um completo desastre para a Grécia, pois o país não tem obtido absolutamente nenhum benefício com os peculiares acordos de dívida implementados desde então.
O que quase ninguém comenta é que um outro exitoso plano de resgate foi efetivamente implementado naquela mesma época em 2010, não para a Grécia, mas para os bancos privados. Por trás da crise grega há um enorme e ilegal plano de resgate de bancos privados. E a forma pela qual tal plano está se dando representa um imenso risco para toda a Europa.


Depois de cinco anos, os bancos conseguiram tudo o que queriam. Por outro lado, a Grécia mergulhou numa verdadeira tragédia: o país aprofundou gravemente seu problema de dívida pública; perdeu patrimônio estatal à medida em que acelerou o processo de privatizações, assim como encolheu drasticamente sua economia. Pior que tudo, tem amargado imensurável custo social representado pelas vidas de milhares de pessoas desesperadas que tiveram seu sustento e seus sonhos cortados pelas severas medidas de austeridade impostas desde 2010. Saúde, educação, trabalho, assistência, pensões, salários e todos os demais serviços sociais têm sido afetados de forma destrutiva.
A distribuição do Orçamento Nacional da Grécia mostra a predominância dos gastos com a dívida sobre todos os demais gastos estatais. De fato, os gastos com o pagamento de empréstimos, outras obrigações de dívida, juros e outros custos absorvem 56% do orçamento estatal:

















Em Maio de 2010, ao mesmo tempo em que todas as atenções estavam focadas nas abundantes notícias sobre a interferência da Troika na Grécia, com seu peculiar “plano de resgate” grego, um outro plano de efetivo resgate bancário viabilizado por um conjunto de medidas ilegais também estava sendo aprovado, mas atenção alguma foi dispensada a esse último.
Em uma tacada, sob a justificativa de necessidade de “preservar a estabilidade financeira na Europa”, medidas ilegais foram tomadas em Maio de 2010, a fim de garantir o aparato que permitiria aos bancos privados livrar-se da perigosa “bolha”, isto é, da grande quantidade de ativos tóxicos – em sua maioria títulos desmaterializados e não comercializáveis - que abarrotava contas “fora de balanço” em sua escrituração contábil. O objetivo principal era ajudar os bancos privados a transferir tais ativos tóxicos para os países europeus.
Uma das medidas adotadas para acelerar a troca de ativos de bancos privados e acomodar a crise bancária foi o programa SMP, mediante o qual o Banco Central Europeu (BCE) passou a efetuar compras diretas de títulos públicos e privados, tanto no mercado primário como secundário. A operação relativa a títulos públicos é ilegal, pois fere frontalmente o Artigo 123 do Tratado da União Europeia. Tal programa constitui apenas uma entre várias outras “medidas não-padronizadas” adotadas na época pelo BCE.
A criação de um “Veículo de Propósito Especial”, uma companhia baseada em Luxemburgo, constituiu outra medida implementada para transferir ativos tóxicos desmaterializados dos bancos privados para o setor público. Acreditem ou não, países europeus se tornaram sócios de tal companhia privada, uma sociedade anônima chamada Facilidade para Estabilidade Financeira Europeia (EFSF). Os países se comprometeram com bilionárias garantias, inicialmente no montante de EUR 440 bilhões, que logo em 2011 subiram para EUR 779.78 bilhões. O verdadeiro propósito de tal companhia tem sido disfarçado pelos anúncios de que ela iria providenciar “empréstimos” para países, fundamentados em “instrumentos financeiros”, não em dinheiro efetivo. Cabe mencionar que a criação da EFSF foi uma imposição do FMI, que lhe forneceu uma contribuição de EUR 250 bilhões.
Juntos, o programa SMP e a companhia EFSF representaram os complementos cruciais para o esquema de alívio de ativos, necessário para concluir o suporte aos bancos privados iniciado desde o início de 2008, por ocasião da crise financeira nos Estados Unidos e Europa. Desde o início de 2009 os bancos privados vinham demandando por mais suporte público para descarregar a excessiva quantidade de ativos tóxicos que abarrotava suas contas “fora de balanço”. O atendimento a essa demanda poderia se dar tanto mediante compras diretas governamentais, como por meio de transferências para companhias independentes de gerenciamento de ativos. Essas duas soluções restaram atendidas pelo SMP e pela EFSF, e as perdas relacionadas aos ativos tóxicos estão sendo repartidas entre os cidadãos europeus.
A troca de ativos tóxicos de bancos privados para uma companhia por meio de simples transferência, sem o devido pagamento e a operação de compra/venda seria ilegal frente às normas contábeis. EUROSTAT modificou tais regras e permitiu a “liquidação de operações conduzidas mediante troca de títulos”, justificando tal ato por “circunstâncias específicas da turbulência financeira”.
A localização da companhia EFSF em Luxemburgo visou, principalmente, escapar da aplicação das leis do Direito Internacional. Ademais, a EFSF é financiada em grande parte pelo FMI, cuja colaboração seriailegal, de acordo com seu próprio Estatuto. No entanto, o FMI também modificou suas regras para proporcionar a ajuda de EUR 250 bilhões à EFSF.
De acordo com a Lei que autorizou a sua criação, a empresa EFSF de Luxemburgo poderia delegar a gestão de todas as suas atividades relacionadas aos instrumentos financeiros; seu conselho de diretores poderia delegar as suas funções, e seus associados, os Estados-Membros, poderiam delegar a tomada de decisões relacionada aos fiadores para o Grupo de Trabalho do Eurogrupo (EWG). Naquela época, tal grupo de trabalho sequer possuía um presidente em tempo integral. A Agência de Gestão da Dívida alemã é quem realmente opera a EFSF, e, em conjunto com o Banco Europeu de Investimento, presta apoio ao funcionamento operacional da EFSF. É evidente a falta de legitimidade da EFSF, já que é realmente operada por um órgão diverso. EFSF é agora o principal credor da Grécia.
Os instrumentos financeiros utilizados pela EFSF são os mais arriscados e restritos, desmate- rializados, não comercializáveis, tais como Floating Rate Notes tipo Pass-trough, arranjos cambiais e de hedge, e outras atividades de co-financiamento que envolvem o administrador britânico Wilmington Trust (London) Limited como o instrutor para a emissão de títulos restritos, não-certificados, que não podem ser comercializados em nenhuma bolsa de valores legítima, pois não obedecem às regras exigidas para títulos de dívida soberana. Este conjunto de instrumentos financeiros tóxicos representa um risco para os Estados-Membros, cujas garantias podem ser exigidas para pagar por todos os produtos financeiros da empresa luxemburguesa.
Um escândalo de grande proporção teria ocorrido em 2010, se esses esquemas ilegais tivessem sido revelados: a violação do Tratado da UE, as alterações arbitrárias nas regras processuais por parte do BCE, Eurostat e do FMI, bem como a associação dos Estados-Membros à companhia privada de propósito especial em Luxemburgo. Tudo isso apenas para resgatar bancos privados, às custas de um risco sistêmico para toda a Europa, devido ao comprometimento dos Estados-Membros com garantias bilionárias que cobririam ativos tóxicos problemáticos não comercializáveis e desmaterializados.
Este escândalo nunca aconteceu, porque em maio de 2010, a mesma reunião extraordinária do Conselho de Assuntos Econômicos e Sociais da Comissão Europeia que discutiu a criação da companhia luxemburguesa EFSF “Veículo de Propósito Especial”, deu uma importância especial para o “pacote de apoio à Grécia”, fazendo parecer que a criação daquele esquema era para a Grécia e que, ao fazê-lo, estariam garantindo a estabilidade fiscal para a região. Desde então, a Grécia tem sido o centro de todas as atenções, persistentemente ocupando as manchetes dos principais veículos de comunicação de todo o mundo, enquanto o esquema ilegal que efetivamente tem suportado e beneficiado os bancos privados permanece nas sombras, e quase ninguém fala sobre isso.
O relatório anual do Banco da Grécia mostra um acentuado crescimento nas contas “fora de balanço” relacionadas a ativos financeiros em 2009 e 2010, em quantidades muito maiores que o total de ativos do Banco, e esse padrão continua nos anos seguintes. Por exemplo, no Balanço Contábil do Banco da Grécia de 2010, o total de ativos em 31/12/2010 era EUR 138,64 bilhões. As contas “fora de balanço” naquele ano chegou a EUR 204,88 bilhões. Em 31/12/2011, enquanto o total dos ativos do Balanço somou EUR 168,44 bilhões, as contas “fora de balanço” atingiram EUR 279,58 bilhões.
Assim, a transferência de ativos tóxicos dos bancos privados para o setor público tem sido um grande sucesso: para os bancos privados. E o Sistema da Dívida tem sido a ferramenta para acobertar isso.
A Grécia foi trazida a este cenário depois de vários meses de pressão persistente por parte da Comissão Europeia, devido a alegações acerca de existência de um excessivo déficit orçamentário, além de inconsistências em dados estatísticos. Passo a passo, um grande problema foi criado em torno dessas questões, até que em maio de 2010 o Conselho de Assuntos Econômicos e Financeiros declarou: “na sequência da crise na Grécia, a situação nos mercados financeiros é frágil e havia um risco de contágio”. E assim a Grécia foi submetida ao pacote que incluiu a interferência da Troika com as suas severas medidas inseridas em planos de ajuste anual, e um peculiar acordo bilateral, seguido por “empréstimos” da EFSF lastreados em instrumentos financeiros de risco.
Economistas gregos, líderes políticos, e até mesmo algumas autoridades do FMI haviam proposto que uma reestruturação da dívida grega iria propiciar resultados muito melhores do que aquele pacote. Isso foi ignorado.
Graves denúncias acerca da superestimação do déficit orçamen- tário - que tinha sido a justificativa para a criação do grande problema em torno da Grécia e a imposição do pacote em 2010 - foram igualmente ignoradas.
Sérias denúncias feitas por especialistas gregos sobre a falsificação de estatísticas também foram desconsideradas. Seus estudos mostravam que o montante de EUR 27,99 bilhões sobrecarregou as estatísticas de dívida pública em 2009, por causa da elevação falsa em determinadas categorias (tais como DEKO, obrigações hospitalares e SWAP Goldman Sachs). Estatísticas de anos anteriores também haviam sido afetadas por EUR 21 bilhões de swaps Goldman Sacks distribuídos ad hoc em 2006, 2007, 2008 e 2009.
Apesar de tudo isso, sob uma atmosfera de urgência e ameaça de "contágio", acordos peculiares foram implementados desde 2010 na Grécia; não como uma iniciativa grega, mas tal como conformado pelas autoridades da UE e do FMI, vinculados ao cumprimento de um conjunto completo de medidas eco- nômicas, sociais e políticas prejudi- ciais, impostas pelos Memorandos.
A análise dos mecanismos inseridos nesses acordos mostra que eles não significaram benefício algum à Grécia, mas serviram aos interesses dos bancos privados, em perfeita consonância com as medidas de resgate ilegais aprovadas em Maio de 2010.
Em primeiro lugar, o empréstimo bilateral usou uma conta especial no BCE, por meio da qual os empréstimos desembolsados pelos países e KfW, os credores, iriam direto para os bancos privados que detinham títulos de dívida desvalorizados, cotados muito abaixo de seu valor nominal. Dessa forma, aquele acordo bilateral peculiar foi arranjado para permitir o pagamento integral para aqueles detentores de títulos, enquanto a Grécia não obtem qualquer benefício. Em vez disso, os gregos terão de pagar de volta o capital, altas taxas de juros e todos os custos.
Em segundo lugar, os “empréstimos” da EFSF resultaram na recapitalização de bancos privados gregos, além de trocas e reciclagem de instrumentos de dívida. A Grécia não recebeu qualquer empréstimo verdadeiro ou apoio da EFSF. Através dos mecanismos inseridos nos acordos com a EFSF, dinheiro efetivo nunca chegou à Grécia, mas apenas os ativos tóxicos desmaterializados que lotam a seção “fora de balanço” do Banco da Grécia. Por outro lado, o país tem sido forçado a cortar despesas sociais essenciais para pagar, em dinheiro, as altas taxas de juros e todos os custos abusivos, e também terá que reembolsar o capital que nunca recebeu. O contrato prevê que tal pagamento pode ser feito também por meio de entrega de patrimônio estatal privatizado.
É preciso buscar as razões pelas quais a Grécia foi escolhida para estar no olho do furacão, submetida a acordos e memorandos ilegais e ilegítimos, servindo de cenário para encobrir o escandaloso resgate ilegal de bancos privados desde 2010.
Talvez essa humilhação se deva ao fato de que a Grécia tem sido historicamente uma referência mundial para a humanidade, pois ela é o berço da democracia, o símbolo da ética e dos direitos humanos. O Sistema de Dívida não pode admitir tais valores, pois não possui o menor escrúpulo em provocar danos a países e povos para obter seus lucros.
O Parlamento grego já instalou a Comissão da Verdade sobre a dívida pública e nos deu a chance de revelar esses fatos; tão necessários para repudiar o Sistema de Dívida que tem subjugado não só a Grécia, mas muitos outros países, sob a espoliação do setor financeiro privado. Somente por meio da transparência e do acesso à verdade os países irão derrotar aqueles que querem colocá-los de joelhos.
Já é chegado o tempo para que a verdade prevaleça, o tempo para colocar os direitos humanos, a democracia e a ética acima de quaisquer interesses inferiores. Esta é uma tarefa para a Grécia, a ser cumprida já.

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